“Começar é o insigne privilégio da vontade. Quem nos oferece a ciência
dos começos, nos faz doação de uma vontade pura”, diz Bachelard em O
Direito de Sonhar.
Na peça CLANDESTINOS um grupo de jovens nos oferece este privilégio, sob
a batuta de um grande diretor que lhes ensina a ciência do começo da
carreira de ator, e faz ao público doação de situações hilariantes e
pessoais daqueles que vêm em busca de realizações na Cidade Grande. É
uma peça de fina comicidade e, como sabemos, “não há comicidade fora do
que é propriamente humano”.
No prefácio de Seis Personagens à Procura de Um Autor,
Pirandello, também às voltas com seres imaginários que tentam entrar em
sua peça, diz que “o poeta, de longe, à revelia deles, observa durante o
tempo todo esta tentativa. E procura, com ela e por ela, dar forma à sua
obra”. João Falcão, autor e diretor, consegue esta forma e vai mais
longe: Como um Felline alucinado, coloca-se ou coloca o autor/personagem
no centro do palco, sofrendo e divertindo-se com suas criaturas,
repartindo suas dúvidas e, principalmente, amando-as de maneira
apaixonada.
CLANDESTINOS é Arte em grande estilo. Bela e reflexiva homenagem a todos
aqueles que trabalham nesta estranha profissão – o teatro –. Momento de
alegria onde percebemos, sutilmente, a essência da juventude que ainda
coloca sua mochila nos ombros, monta no Rocinante e parte em busca dos
sonhos e da vida.
Com um ritmo preciso, o cômico e o lírico se mesclando com perfeição, o
espetáculo é um show de talento. Assisti-lo, um prazer inesquecível. É,
talvez, o maior acontecimento teatral brasileiro dos últimos anos. Mas
fico apenas na constatação, pois analisá-lo com minúcias é tirar do
espectador a beleza da descoberta, das deliciosas gargalhadas provocadas
por situações e diálogos inusitados, da grande ternura que sentimos ao
ver que o sonho não acabou.
O elenco - Adelaide de Castro, Alexandro Claveaux, Bruno Ferraz,
Chandelly Braz, Deborah Wood, Eduardo Landim, Emiliano D’Ávila, Fábio
Enrique, Giselle Batista, Hugo Leão, Luana Martau, Michelle Batista,
Pedro Gracindo e Renata Guida – é excelente. São grandes Artistas (assim
mesmo com A maiúscula), cheios de energia, talento e garra.
O figurino de Kika Lopes, a luz de Paolo Denizot, a direção musical de
Dino Rica, a direção de movimento de Duda Maia, se harmonizam dentro do
magnífico cenário de Sérgio Marimba, que me fez imaginar o cérebro de
alguns personagens machadianos com suas zonas de luz e sombra, seus
trapézios de pensamentos e sonhos. Cabe ressaltar também o difícil e
preciso trabalho de Jô Abdu, na Produção, assistida por Reinaldo Galvão,
o cuidado da camareira Cecília e a assistência de direção de João
Sanches que, com Lúcio Tavares, fotógrafo, cineasta e produtor do vídeo
que registra o espetáculo, completa esta engrenagem perfeita.
Em análise anterior, sobre escultura de Zandra Coelho, citei Ítalo
Calvino que, em suas conferências em Harvard, diz que a “leveza” está
associada à precisão, à exatidão e à determinação, nunca ao que é vago,
ao aleatório e, citando Paul Valéry, afirma que “é preciso ser leve como
o pássaro, e não como a pluma”.
Ao contrário da pluma que segue o vento, o pássaro tem vida própria,
sabe o rumo que toma. Esta é a leveza do artista criador, que brota no
próprio ato de criar, como na obra de João Falcão. Ao assisti-la
sentimos que estamos diante de um transformador das Artes Cênicas
brasileiras.
Finalizo, pois o espaço é restrito e meus três ou quatro leitores devem
estar arrepiados com tanta citação. Têm razão, mas me explico: esta é
uma crônica. Não sou crítico. Sou apenas um expectador que foi assistir
CLANDESTINOS, esta comédia humana, inesquecível, e saiu maravilhado. E
quero repartir este maravilhamento com meus leitores e dizer a eles que
assistam a peça e conheçam o mundo mágico, difícil, onírico, sério e
hilariante da arte. CARPEM DIEM.
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CLANDESTINOS – texto e direção de João Falcão, com a Companhia Instável
de Teatro - está sendo apresentada no Teatro Glória (Rio de Janeiro) de
Quinta a Sábado às 21 h. Domingo às 19 horas.
Um conselho: Cheguem com antecedência, pois os ingressos têm se esgotado
rapidamente e o público aumenta dia a dia (ou noite a noite).