Dias atrás, abrindo um velho romance policial reli uma cena em que o
detetive passa por um laranjal e, em meio a tantas árvores verdes, vê
uma totalmente branca pela florada. Ele pergunta ao xerife local por que
aquela laranjeira, diferentemente de todas as outras, está cheia de
flor. O xerife, então, lhe responde que ela vai morrer, sabe que vai
morrer e, por isto, se encheu de flores para que seus frutos nasçam e
produzam as sementes que perpetuarão sua espécie.
É uma cena simples, bonita, que me levou a pensar na vida e – ah, a
velhice! - sobretudo, na morte.
Mas os pensamentos, em separado, foram rápidos, já que há muito percebi
que vida e morte são a mesma coisa. Uma não existe sem a outra e se meus
três ou quatro leitores têm curiosidade intelectual podem ler alguns
textos, sagrados ou não, e verão que o tema é recorrente.
Querem exemplos? Se vocês são religiosos, abram o evangelho de João,
12:24: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só.
Mas, se morrer, dá muito fruto.” Como são belas as palavras e as cenas!
Primeiro imaginemos o grão sozinho, sobre uma pedra, sentindo a solidão
cósmica. Não nos leva a compreender o ser insignificante que somos?
Agora imaginemos o outro grão se abrindo e, de sua morte, os brotos
saindo e se transformando em árvores, flores e frutos. Não nos leva a
compreender o quanto somos importantes e como é bela e fundamental a
morte que se transforma em vida e continua o movimento cósmico,
universal?
Insignificantes e importantes são palavras. Como são palavras dia e
noite, fogo e água, etc., etc., que os gramáticos chamam de “antônimos”,
mas que nós, simples observadores, podemos dar um nome mais bonito, como
por exemplo, “renovação”.
Mas voltemos à crônica e, para complementar o texto anterior, convidamos
os leitores a abrirem o velho Shakespeare e escutarem Hamlet: “Há uma
especial Providência na queda de um pardal. Se há de ser agora, não será
depois. Se não for depois, há de ser agora. Se não for agora, há de ser,
todavia. Estar pronto é tudo. Uma vez que ninguém sabe o que virá, que
importa que seja logo? Que assim seja!”?
Estar “maduro”, para o grão, ou “estar pronto”, para o jovem príncipe, é
estar preparado para a morte. Mas o que é a morte?
Como símbolo ela é o fim, o “aspecto perecível e destrutível da
existência.”, mas pode ser, também, “revelação e introdução”, já que
“Todas as iniciações atravessam uma fase de morte, antes de abrir o
acesso a uma vida nova.”, isto é, “a morte em um nível é, talvez, a
condição de uma vida superior em outro nível”.
O eterno retorno? O círculo que se inicia no próprio fim? Pode ser. Mas
por que estou falando tanto deste assunto num domingo que prenuncia
chuva, a tão sagrada e necessária chuva que trará vida aos pastos, às
lavouras e, por que não?, tornará menos ressecados nossos narizes?
A resposta é simples. Há muitos anos descobri que reler é mais
importante que ler e, ontem à noite, reli A MORTE DE IVAN ILITCH, esta
pequena obra-prima de Tolstoi e, como sempre acontece, me encantei e me
comovi, principalmente com seu final.
Ivan leva uma vida comum. Tem um bom cargo púbico, mulher, filhos,
colegas, etc., etc. Um dia sente uma pequena indisposição. Procura um
médico e constata: está com câncer. Juiz, vem sua primeira grande
dúvida: “e se minha vida inteira tiver sido realmente injusta?”. É uma
indagação. E nós, leitores, também indagamos: como ele deveria ter
vivido? E nós, como vivemos?
A história continua. Ivan tem medo, sofre física e espiritualmente. E
chega a morte.
Para mim, é a cena mais bela do livro, quando um amigo ao lado do leito,
assistindo a um longo suspiro, diz:
- Pronto! Acabou.
Ivan Ilitch ouviu essas palavras, repetiu-as na alma.
“Acabou a morte! Ela já não existe mais.”
Respirou profundamente, interrompeu no meio a respiração, estirou-se e
morreu.
Acabou a morte para Ivan, como acabará, em breve, para aquela laranjeira
que concentrou toda sua força para continuação da espécie. A morte
acabará para ambos e em seu lugar a vida fluirá. Como flui em nós e nos
livros, cada vez que, numa noite de insônia, reabrimos um clássico ou
não, e penetramos na beleza de suas páginas. Ave, Palavra! Carpe Diem!