05/04/2008
Ano 11 - Número 575


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak

 

SOBRE LÍRIOS E METRALHADORAS

 

 Estava na Rodoviária, esperando meu filho Yassir Chediak que chegaria do Rio, quando um vira-latas amarelo se aproximou de mim e sacudiu o rabo como se pedisse comida e carinho. Não lhe dei nem uma coisa nem outra. Disse um “sai, sai, sai...” apressado e ele se afastou. O mesmo aconteceu com uma mulher que, devorando um sanduíche de mortadela, subiu no banco, para que o cão não a tocasse, e exclamou em alto e bom som: “Ai, que droga. Eu detesto cachorro, eu detesto cachorro”.

O pobre animal continuou sua sina até que, surgindo não sei de onde, um homem vestido com um macacão azul se aproximou dele, disfarçadamente. Com um movimento brusco, de quem se assusta ou conhece o perigo, o vira-latas correu e se refugiou num canto da Estação. O homem de macacão foi em sua direção, chamando-o, fingindo agradá-lo. O cãozinho disparou para as escadas e outro homem, um pouco mais jovem, vindo da Plataforma, impediu que ele entrasse no prédio. Logo outros surgiram e cercaram o cão.

Este, a princípio, encolheu-se medroso. Os homens aproximaram-se mais, um pouco encurvados como se preparassem o bote. O cãozinho começou a gemer com medo. O homem de macacão azul tirou uma corda do bolso e estendeu-a em direção a ele que, numa atitude surpreendente para tão pequeno animal, arreganhou os dentes. Em poucos segundo, aquele cãozinho de rodoviária escorraçado por todos se transformou numa fera e partiu para o ataque. Os homens, temerosos das mordidas, correram. O cão ainda perseguiu o de macacão azul até que este entrou na sala da Estação e bateu a porta. Ele, então, rosnou com ódio e fúria e se afastou, pelos eriçados, atravessando a ponte e sumindo pela cidade.

À noite, sozinho em meu quarto, pensei no cãozinho e sua reação e, consequentemente a comparei com as reações humanas, o que me levou a refletir sobre a violência que se alastra por todas as cidades brasileiras.

É sabido que somos um povo que passou pela vergonha da escravatura, que formou sua sociedade explorando os negros, os índios, os pobres. Que construiu suas cidades de maneira preconceituosa. Aqui abro um parêntese para citar o Rio de Janeiro, que foi capital da República e, por isto, meta de muitos imigrantes: no coração da cidade estavam o comércio, os escritórios, as casas dos ricos. Pobres e negros sem poder aquisitivo para freqüentar os ambientes caros da burguesia, se isolaram e construíram sua própria senzala: as favelas. Formaram uma grande multidão de excluído, mão de obra barata para os habitantes das avenidas à beira mar, dos bairros chiques. Eram lavadeiras, pedreiros, encanadores, etc., etc., cujos filhos, netos, bisnetos, etc. não tiveram acesso à saúde, à educação, aos bons empregos.

Durante anos, nestas favelas, foi se formando uma consciência, uma nova consciência. De um lado explodiu o processo criativo com artistas e atletas geniais – que logo foram absorvidos pela dita “sociedade” – e de outro o tráfico, a violência, o crime. Muitos jovens que, se tivessem tido uma oportunidade, seriam grandes brasileiros, se tornaram grandes marginais. Um povo pacato, alegre, cheio de vida, sentindo-se acuado mostrou os dentes e agora faz correr aqueles que os aprisionaram na miséria durante anos.

Fecho o parêntese e constato que, como a senhora gorda que comia seu sanduíche de mortadela, muitos sobem nos bancos ou nas mesas, tentando livrar sua cara. Outros correm e trancam com grades suas portas e janelas. Outros xingam os governantes atuais, como se a miséria fosse culpa só deles e não uma doença nefasta que nos contamina desde a Monarquia.

Como o poeta, sabemos que “Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da Lei.” Sabemos que, para nos livrarmos desse estado lastimável precisamos ter consciência política, votar certo, exigir o cumprimento das promessas dos governantes e nos mobilizar, mas precisamos também arregaçar as mangas e participar da construção deste imenso e fértil canteiro chamado Brasil para que os lírios nasçam ao som das violas, dos violões, dos pandeiros e cavaquinhos e não ao som dos gemidos de fome ou do pipocar das metralhadoras. Carpe Diem.


 
(05 de abril/2008)
CooJornal no 575


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com