22/03/2008
Ano 11 - Número 573


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak

 

ZÉ MINDINHO
 

Ontem, atravessando a Praça, encontrei o Zé Mindinho que, segurando um enorme guarda-chuva, devorava um saquinho de pipocas e cuspia no chão os piruás. Ao me ver, abanou a mão como um ator canastrão e gritou: “E essa chuva que não pára?”.

- Está danada. Está danada! – concordei rapidamente, tentei me desviar mas ele me segurou o braço e disparou um monte de impropérios contra o tempo e a cidade. Falava de boca cheia, gesticulando e, de vez em quando, olhava para os lados, com os cantos dos olhos, procurando algum provável ouvinte. Aqui abro um parêntese para dizer que numa noite sem chuva logo, logo se formaria uma rodinha para ouvi-lo e fazer coro com sua cantilena, mas com o tempo ruim ninguém se aventura a sair de casa.

Fecho o parêntese e informo que terminada a tarefa de comer, Zé Mindinho amassou o saquinho com a mão e atirou-o no meio da rua. Pouco depois, como bom brasileiro, começou a esculhambar o presidente, o governador, o prefeito e, para provar que tinha razão em sua ira, apontou-me para o papel branco, agora todo molhado, e esbravejou:

- Olha só. A cidade está um lixo. Um lixo.

Pensei em lembrar-lhe que ele é quem havia jogado o saquinho no chão e que, pelo contrário, a rua estava brilhando de tão lavada pela chuva, mas achei melhor me calar. Dei uma desculpa qualquer, consegui me livrar de sua mão, que ainda me segurava o braço, e me afastei.

Não havia chegado à esquina, ainda com a voz do Zé Mindinho nos ouvidos, quando me lembrei da frase de José do Patrocínio, negro guerreiro e patriota, chamado “O Tigre da Abolição”, num de seus comícios contra a escravatura: “Deus deu-me alma de Otelo para ter ciúmes de minha pátria”.

Pode ser uma frase bombástica, de efeito, mas demonstra bem o sentimento dos brasileiros daquele tempo por sua pátria. Era um amor integral, vinte e quatro hora por dia, que se manifestava diante de uma causa, uma paisagem ou simplesmente por terem nascido num País gigantesco e belo.

Hoje – pensei -, em tempos globalizados, somos brasileiros apenas durante a Copa do Mundo. Mesmo assim com restrição, já que também somos técnicos e a seleção escalada nunca coincide com a nossa.

- E por que essa atitude? - Perguntarão meus três ou quatro leitores.

A resposta é simples: porque precisamos de provocação. O Brasil é invejado lá fora. Asiáticos, africanos, europeus e americanos babam diante de nosso país/continente, de suas riquezas naturais, principalmente de sua abundância de água. E nós não estamos nem aí para isto. Somos, apenas, Otelos de nós mesmo, eis a questão. Só sentimos ciúmes, ou raiva, de nós mesmo. E, como disse no início deste parágrafo, precisamos de provocação. Para provar isto, voltemos uma semana no tempo e vejamos nossa reação quando os espanhóis trataram alguns brasileiros como cachorros, simplesmente por serem brasileiros. A notícia mal acabou de chegar aqui e nos unimos num coro de protestos. Abro outro parêntese para dizer que houve um brasileiro que tentou minimizar o fato: Pelé.

Sem entender a posição do craque, fecho o parêntese e continuo. Sempre recebemos todos os povos com alegria. Abraçamos os espanhóis como abraçamos um ente querido, mesmo sabendo que muito deles vieram para cá para abrir motéis, explorar a prostituição, etc., etc. Mesmo sabendo que eles agora dominam a telefonia, têm o 3º maior banco em nosso país, o Santander, e que estão levando nosso dinheiro – de maneira oficial – da mesma maneira que os piratas levaram nosso ouro. Ainda assim, nos encantamos com sua dança, com sua música, com seu cinema, etc., etc. Os admiramos e respeitamos. Isto é, até sermos tratados por eles como cachorros. Então nos revoltamos. Eis aí uma amostra de nosso temperamento: Nos revoltamos contra a ingrata Espanha, mas entre nós, de brasileiro para brasileiro, nos maldizemos.

Tolstoi dizia que quem quiser ser universal, fale de sua aldeia. É assim com a literatura, é assim com os sentimentos. Por isto Zé Mindinho fala mal de nossa cidade. Ele sabe que ela está bem, que temos um sistema de saúde pública excelente, nossas crianças estão agasalhadas, recebendo pão e ensino nos Projetos criados pelo atual Prefeito, nossos bairros mais pobres recebem um tratamento digno, com suas ruas sendo asfaltadas, escolas funcionando, etc., etc. Três Corações se universalizou, é uma cidade com característica do primeiro mundo, e por isto falamos mal dela.

Ah, como compreendo meu amigo Zé Mindinho. Este é um ano eleitoral e é preciso destruir os feitos alheios, principalmente os bons feitos alheios. Afinal, precisamos viver. E para quem não constrói nada, viver é destruir. Mesmo que seja com palavras. E como são destruidoras as palavras.


 
(22 de março/2008)
CooJornal no 573


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com