15/12/2007
Ano 11 - Número 559
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
OLHA, O ARCO-ÍRIS! |
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No grande rádio sobre a cristaleira da sala,
Chico Alves soltava a voz e, logo em seguida, o locutor fazia reclames dos
patrocinadores. Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal. Elixir de
inhame Goulart. O mundo gira e a lusitana roda...
Quando começava a trovejar minha avó pegava uma lata cortada ao meio,
acendia palha benta e esparramava a fumaça pela casa, murmurando suas
orações. Meu avô, mais céptico, vestido de pijama, desligava o rádio,
tirava o plug da tomada e observava tudo, até que a chuva despencasse.
Então ele me gritava para fechar a vidraça. De sua cadeira de balanço,
observava a enxurrada carregando folhas, galhos, latas e sapatos velhos.
As tempestades eram mistérios que todos temiam. Quando cessava, a vida na
Rua da Cotia recomeçava, cada mulher contando os estragos que ela tinha
feito em sua casa, os homens examinando telhados, as crianças correndo
descalças nas poças e nos pequenos riachos que ainda corriam encostados às
calçadas, apontando o céu, gritando “olha, o arco-íris, o arco-íris!”.
Meus avós moravam numa casa grande, com um grande quintal. Creio que era
ali, cuidando das parreiras, dos figos, das laranjeiras, dos canteiros de
verduras e dos muitos, muitos tomateiros, que eles reabasteciam a memória
de sua terra natal, o Líbano. As poucas galinhas, que tanto simbolizam os
quintais mineiros de outrora, ficavam presas num cercado de bambu atrás da
casa sem nenhuma atenção especial a não ser tratar-lhes e colher os ovos.
À noite, as tempestades eram piores pois acabava a luz, os relâmpagos
davam um tom apocalíptico ao céu, e minha avó acendia tocos de velas que,
quase sempre, se apagavam com o vento. Ajoelhada diante do altar de Santa
Bárbara, rezava o terço em árabe, o que o tornava incompreensível para
mim, enquanto meu avô comia o pão ázimo molhado no alho socado com limão.
Meus avós eram velhos e eu pensava que sempre foram assim. Não podia
compreender que há a infância, juventude, velhice, morte. A morte
acontecia em outras paragens, não em nossa casa.
Para mim o tempo só passava através do grande relógio pendurado na parede
da sala, mesmo assim lentamente. Ah, como custava chegar a hora da janta,
a Hora do Ângelus, a hora de ouvir os programas da Mayrink Veiga ou da
Nacional! Como custava chegar o fim de semana quando ia para a casa de
meus pais! O tempo não afetava meus avós, meus pais e nós, as crianças.
Mas de repente...
De repente, como escreveu Alarcon, “o que se passou, então? A vida. E eu
estou velho”. E, como todo velho, vivo muito da memória e, quase sempre,
associo o presente ao passado, misturo as coisas. O perfume de uma jovem
que passa me leva a jardins antigos, o farfalhar de uma saia me leva a
vielas escuras. Um grito me leva a outras paragens. Mesmo na música, o Rap
e o Funk me levam ao samba. (Quando nasceu, o samba era proibido na
sociedade. Seu lugar era o gueto, a zona, os morros. Coisa de marginais,
diziam os grã-finos de então. A mesma coisa que acontece hoje com o Rap e
o Funk). O mundo gira e a lusitana roda.
Da varanda de minha casa vejo o céu escurecer, o vento dobrar as pequenas
árvores que plantei recentemente no quintal e os pássaros sumirem na mata
que fica perto de minha casa. Recolho a cadelinha fila, que amanhã faz
três meses, e fecho a porta do canil. Ela tem medo dos trovões e fica
agitada. Em sua ingenuidade de filhote, late contra o céu mas, vendo que
de nada adianta, vai para seu canto. As nuvens estão carregadas, gotas
grandes começam a cair e, como os velhos não devem tomar chuva, me
recolho. Tenho 65 anos.
Olho pela fresta da janela e vejo a enxurrada levando folhas, como um rio
leva pequenos barcos. A partida dos barcos me entristece tanto quanto a
partida dos trens e as tempestades. Filho de ferroviário, vi trens
partirem todos os dias de minha infância. Mineiro, criado entre montanhas,
vi muitas tempestades.
Escrevo num pedaço de papel o que preciso fazer amanhã. Furando-o no meio,
coloco nele a chave da casa e, em seguida, coloca-a na fechadura. Assim
não esqueço. Meus avós e meus pais morreram, há muitos anos. As
tempestades não são mais mistérios. De minha cadeira, observo a água
carregando folhas, galhos... e ouço as crianças lá fora, correndo pelas
poças e pelos riachos que descem a rua, rentes às calçadas, gritando,
“olha, o arco-íris, o arco-íris”. Anoitece.
(15 de dezembro/2007)
CooJornal
no 559
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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