08/12/2007
Ano 11 - Número 558


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



POR VIA DAS DÚVIDAS...

Funerária carioca. Dois funcionários são encarregados de preparar o cadáver de uma velha senhora moralista. Como é de praxe, para as que morrem virgem as flores são os lírios brancos. Para as não virgens, as violetas.

A falecida foi sempre uma mulher exemplar, freqüentadora de igreja, de procissões, de novenas, de sacristias, etc., etc. Solteirona convicta, nunca teve um homem em sua vida. Um exemplo de virtude. Os dois funcionários, enquanto preparam os lírios, cantam um sambinha. Um deles olha o rosto da morta - que tem um jeito austero -, pensa, pensa e diz para o outro:

- Tá ficando bonita com esses lírios, mas... escuta aqui, ô Zé, você tem certeza que ela é virgem mesmo?

- Claro. Totalmente virgem.

E se aproxima, olha a mulher, coça a cabeça, dá uma pitada no cigarro e responde, sério:

- Por via das dúvidas, salpica umas violetas.

O publico explode em gargalhada, uma das muitas gargalhadas que dão durante o filme. A alegria é geral, contagiante. Quando o filme termina, todos saem felizes. Que grandes atores eram Oscarito, Grande Otelo, Golias, etc., etc., que conheciam a alma de sua gente e sabiam brincar com suas dores, partilhar de suas alegrias, ser cúmplices de suas malícias. Era a época da chanchada, gênero genuinamente brasileiro, tão combatido pelos “intelectuais” (assim mesmo, entre aspas) e tão amado pelo povo.

Se era tão amada, por que foi combatida?, perguntarão alguns. A resposta é simples: por razão mercadológica. Não interessava aos Estados Unidos – que dominava (e ainda domina) o mercado cinematográfico - que o Brasil, quinto mercado do mundo, tivesse uma indústria forte. Não interessava que nenhum país tivesse uma indústria forte. Afinal, Hollywood é o transmissor do ideário americano, foi com Hollywood que eles venderam para o mundo, além de sua ideologia, suas bugigangas de plástico, seus bens de consumo muitas vezes inúteis e perniciosos, como, por exemplo, o cigarro.

A chanchada competia com eles. E ganhava. Nossos filmes arrastavam multidões para ver seus ídolos do rádio, das novelas radiofônicas, das telas e, principalmente, ouvir sua própria língua. Os cinemas lotavam, filas dobravam quarteirões. Era assim em todo o país, da maior à menor cidade, mas foi combatida com babas e dentes. Se seus roteiros eram ingênuos era acusada de simplista. Se eram elaborados era acusada de pretensiosa. Hoje ela é cult, mas antes era perigosa, nos fazia rir de nossas mazelas com um espírito ingênuo/ferino. E rir era perigoso.

Como disse Henri Bérgson, “Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função social”. E um povo que compreende sua função social, que através de sua arte vê e compreende a si mesmo pode rebelar-se contra engodos, pode recusar o telefone rosa das comédias americanas ou o final dialético dos filmes russos. E na época da chanchada os dois países nos disputavam como duas hienas disputam uma carniça.

Os americanos “venceram” a batalha, a chanchada foi abatida da mesma maneira que abateram nossas florestas e, em seguida, nossa liberdade. Levaram nossa alegria da mesma maneira que levaram nosso ouro e nossas vozes, mas a guerra continuou. Como a fênix, renascemos e, com o renascimento, veio novamente a desagregação destruidora. De um lado o cinema novo, de outro o que chamaram, pejorativamente, de pornochanchada. A classe “mais esclarecida” (assim mesmo, entre aspas) ficou com o primeiro, o povo com o segundo gênero. Nos dividiram para nos enfraquecer e ganharam mais uma batalha.

O cinema brasileiro andou às tontas, batendo com a cabeça nas paredes, mas – ah, grande abnegação! – a juventude atual pôs pra quebrar e vimos filmes que são verdadeiras peças de resistência: BICHO DE 7 CABEÇAS, CIDADE DE DEUS, TROPA DE ELITE, para citar apenas alguns, mostraram a força da nova geração.

Hoje, morando no interior de Minas, não participo mais da profissão cinematográfica. Às vezes converso com amigos que ainda trabalham no ramo. Alguns deles estão eufóricos, chegam mesmo a afirmar: “Braz, vencemos a guerra... os estrangeiros querem se aliar a nós. Vencemos a guerra”. Fico feliz. Respondo: “Sei, sei! Mas... por via das dúvidas, salpica umas violetas!”


 
(08 de dezembro/2007)
CooJornal no 558


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com