Braz Chediak
E O TREM PARTE |
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Com freqüência penso no “por que” ou “para que” continuar nesse ofício de
cronista, registrando fatos, impressões ou paisagens que, na maioria das
vezes, só interessam a mim, e penso em parar de escrever para sempre. Mas,
às vezes, alguma cena, gesto, som ou, simplesmente, uma constatação me
toca de tal maneira que tenho vontade de registrá-la e compartilhá-la com
meus três ou quatro leitores como forma de retribuição ao carinho, ao
imenso carinho que deles tenho recebido. E continuo.
Alguns assuntos me parecem demasiadamente particulares, como a velhice,
por exemplo, e raramente os publico. Mas, agora que ela chegou para mim,
que a encontro todos os dias, seja na frente do espelho, seja em textos
literários como esta interpretação do Eclesiastes, feita por Jastrow do
qual, pela sua beleza, transcrevo alguns pedaços: “Lembra-te de teu
criador durante os dias de tua juventude, antes que cheguem os dias maus,
e que se aproximem os anos em que dirás: Não experimento mais nenhum
prazer. Antes que se obscureçam o sol e a luz, a lua e as estrelas, e que
as nuvens retornem após a chuva... antes que o cordão de prata se
desprenda, que o vaso de ouro se parta, que o balde se despedace na fonte
e que a roda se quebre na cisterna...”, me sinto tentado a falar dela com
mais freqüência. Só tentado, pois – como nos ensina o mesmo Eclesiastes -
a vida é tudo que flui e, como a chuva voltou e com ela o verde dos
capinzais, as sementes e os pássaros, por ver a juventude mais radiante e
bela, por compreender o fluir e, por respeito à vida, esta vida que está
tanto na imperceptível mônada como no grande OM, me silencio
respeitosamente diante da renovação e bendigo tudo que se renova.
Já disse em outras crônicas que nada me comove tanto quanto uma mulher
solitária. Talvez seja porque lá dentro, lá no mais profundo universo de
minha própria gênese, está gravada a imagem da fêmea primal, aquela que
através do tempo me trouxe à luz. Esta emoção é tão grande que ontem à
noite, ao passar diante de um velho hotel (destes onde as pessoas moram,
que substituíram as pensões de antigamente), ao ver uma jovem sentada
sozinha num de seus degraus me deu vontade de parar e conversar com ela,
saber de sua vida, de seus sonhos, suas dores e - quem sabe? - suas
alegrias.
Cheguei mesmo a parar, mas – aí entra novamente a velhice, a precaução, o
medo de me expor ao ridículo – continuei meu caminho e forjei a desculpa
(para mim mesmo, é claro) que ela estaria esperando alguém ou, como todo
jovem, viajando. Sim, viajando, já que, como nos disse mestre Bachelard,
“Nada é fixo para aquele que alternadamente pensa e sonha.”, e ela, em sua
imaginação, talvez estivesse percorrendo ruas da infância, cidades e
países distantes... ou, simplesmente, construindo o ser sonhado, o
companheiro perfeito, definitivo, que todos almejam encontrar, o que
também é uma viagem.
Já em casa, esquentei um pouco de leite para a cadelinha fila, que há
alguns dias mora comigo, e observei seus movimentos leves, suas lambidas
rápidas até limpar a vasilha e, em seguida, sua preguiça infantil e seu
sono, o sono constante de todos os filhotes saudáveis depois que se
alimentam.
Bem mais tarde, cansado, deitei-me e também senti preguiça e sono. A
preguiça e o sono dos velhos que percorreram longas estradas. Fiz um
pequeno balanço do dia e me dei conta que fizera uma viagem. Uma viagem
inversa, uma viagem que começa na velhice, passa pela juventude e chega à
infância. O velho, é claro, sou eu. A juventude é de uma pessoa
desconhecida, que talvez nunca mais verei, e a infância é de uma cadelinha
fila, ainda chocada pela separação brusca da mãe e surpresa por tantas
descobertas... Uma viagem que todos nós fazemos, mas que, às vezes, nem
percebemos o caminho.
Não importa. “O caminho que sobe é o mesmo caminho que desce”, é o caminho
de todos e de cada um de nós e o percorremos. E agora, diante do
computador, pensando que há hora de embarque e hora de desembarque e que
durante o trajeto alguém lerá esta crônica, me alegro porque, seja qual
for a idade, seja qual for a sensação, estaremos juntos neste trem que já
partiu em direção à estação final.
(24 de novembro/2007)
CooJornal
no 556