24/11/2007
Ano 11 - Número 556


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



E O TREM PARTE

Com freqüência penso no “por que” ou “para que” continuar nesse ofício de cronista, registrando fatos, impressões ou paisagens que, na maioria das vezes, só interessam a mim, e penso em parar de escrever para sempre. Mas, às vezes, alguma cena, gesto, som ou, simplesmente, uma constatação me toca de tal maneira que tenho vontade de registrá-la e compartilhá-la com meus três ou quatro leitores como forma de retribuição ao carinho, ao imenso carinho que deles tenho recebido. E continuo.

Alguns assuntos me parecem demasiadamente particulares, como a velhice, por exemplo, e raramente os publico. Mas, agora que ela chegou para mim, que a encontro todos os dias, seja na frente do espelho, seja em textos literários como esta interpretação do Eclesiastes, feita por Jastrow do qual, pela sua beleza, transcrevo alguns pedaços: “Lembra-te de teu criador durante os dias de tua juventude, antes que cheguem os dias maus, e que se aproximem os anos em que dirás: Não experimento mais nenhum prazer. Antes que se obscureçam o sol e a luz, a lua e as estrelas, e que as nuvens retornem após a chuva... antes que o cordão de prata se desprenda, que o vaso de ouro se parta, que o balde se despedace na fonte e que a roda se quebre na cisterna...”, me sinto tentado a falar dela com mais freqüência. Só tentado, pois – como nos ensina o mesmo Eclesiastes - a vida é tudo que flui e, como a chuva voltou e com ela o verde dos capinzais, as sementes e os pássaros, por ver a juventude mais radiante e bela, por compreender o fluir e, por respeito à vida, esta vida que está tanto na imperceptível mônada como no grande OM, me silencio respeitosamente diante da renovação e bendigo tudo que se renova.

Já disse em outras crônicas que nada me comove tanto quanto uma mulher solitária. Talvez seja porque lá dentro, lá no mais profundo universo de minha própria gênese, está gravada a imagem da fêmea primal, aquela que através do tempo me trouxe à luz. Esta emoção é tão grande que ontem à noite, ao passar diante de um velho hotel (destes onde as pessoas moram, que substituíram as pensões de antigamente), ao ver uma jovem sentada sozinha num de seus degraus me deu vontade de parar e conversar com ela, saber de sua vida, de seus sonhos, suas dores e - quem sabe? - suas alegrias.

Cheguei mesmo a parar, mas – aí entra novamente a velhice, a precaução, o medo de me expor ao ridículo – continuei meu caminho e forjei a desculpa (para mim mesmo, é claro) que ela estaria esperando alguém ou, como todo jovem, viajando. Sim, viajando, já que, como nos disse mestre Bachelard, “Nada é fixo para aquele que alternadamente pensa e sonha.”, e ela, em sua imaginação, talvez estivesse percorrendo ruas da infância, cidades e países distantes... ou, simplesmente, construindo o ser sonhado, o companheiro perfeito, definitivo, que todos almejam encontrar, o que também é uma viagem.

Já em casa, esquentei um pouco de leite para a cadelinha fila, que há alguns dias mora comigo, e observei seus movimentos leves, suas lambidas rápidas até limpar a vasilha e, em seguida, sua preguiça infantil e seu sono, o sono constante de todos os filhotes saudáveis depois que se alimentam.

Bem mais tarde, cansado, deitei-me e também senti preguiça e sono. A preguiça e o sono dos velhos que percorreram longas estradas. Fiz um pequeno balanço do dia e me dei conta que fizera uma viagem. Uma viagem inversa, uma viagem que começa na velhice, passa pela juventude e chega à infância. O velho, é claro, sou eu. A juventude é de uma pessoa desconhecida, que talvez nunca mais verei, e a infância é de uma cadelinha fila, ainda chocada pela separação brusca da mãe e surpresa por tantas descobertas... Uma viagem que todos nós fazemos, mas que, às vezes, nem percebemos o caminho.

Não importa. “O caminho que sobe é o mesmo caminho que desce”, é o caminho de todos e de cada um de nós e o percorremos. E agora, diante do computador, pensando que há hora de embarque e hora de desembarque e que durante o trajeto alguém lerá esta crônica, me alegro porque, seja qual for a idade, seja qual for a sensação, estaremos juntos neste trem que já partiu em direção à estação final.



 
(24 de novembro/2007)
CooJornal no 556


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com