23/06/2007
Ano 11 - Número 534


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



VOZES DA NOITE

Completo 65 anos e percorro alguns fatos da infância, buscando fragmentos de minha história. Passo o dia refletindo na velocidade do tempo e, quando escurece, “como a ave que volta ao ninho antigo”, vou à casa de meus pais. Sento-me na velha sala, agora vazia, e pouco a pouco identifico os mesmos sons do tempo em que eles viviam: crianças brincando – outras crianças, certamente – os gritos das mães chamando-as para o jantar ou para dormir, o latido dos cães e, mais raramente, a conversa de alguns vizinhos comentando o último capítulo da novela ou um jogo de futebol.

A noite está fria mas, mesmo assim, vou até o quintal. A água da casa está desligada, o mato cobre o que outrora foram canteiros, mas as árvores continuam belas e sinto o cheiro e o gosto das jabuticabas, das uvaias, das limas, das goiabas... É a memória afetiva, a primeira e última memória.

Sento-me na escada dos fundos, sob a mangueira. Por alguns instantes penso que, até o momento da nossa morte, esta memória é como um moto contínuo a nos lembrar origens, antepassados, histórias, mas, apesar de estar sozinho, o ideal para refletir, não consigo articular os pensamentos. O passado é grande demais para ser invadido por filosofias ou conclusões.

No silêncio, que agora é quase completo, só tem lugar para as vozes da noite, com meu pai contando sobre o dia em que comprou o lote, como construiu a casa, e minha mãe dizendo que era preciso ampliar a varanda, fazer um quartinho para guardar os freezers que ficavam cheios quando a família se reunia para o natal. Para eles “a casa” era o abrigo, o canto inviolável onde podiam chorar as mágoas, rir as alegrias e, principalmente, sonhar os sonhos.

Agora, revisitando-a, compreendo melhor as palavras de Bachelard, que já citei tantas vezes: “A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser “atirado ao mundo”...o homem é colocado no berço da casa. E sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço... A vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa”.

Já no fim da vida, minha mãe gostava de contar que, quando se casou, ela e meu pai moraram num vagão de carga estacionado em frente à estação para onde ele fora transferido. Isto, mais que uma história, era um símbolo da vida que levariam. Como meu pai era ferroviário tornaram-se um casal errante, morando em diversos lugares, em diversas estações. Mas nenhuma era deles. Poderiam ter que sair a qualquer momento, bastava a necessidade de preencher algum cargo em outro lugar ou o capricho de um diretor da ferrovia. Havia sempre a possibilidade de partir.
Ainda me recordo das mudanças. Mudanças de pobre, com engradados de galinhas, o cachorro “Palhaço” amarrado numa corda, bacias, canecas, tachos, peneiras, o eterno frango com farofa – a gostosa matula -, minha mãe contando os sete filhos para que não se perdessem, recomendando que um segurasse na mão do outro, o trem partindo e, pelas janelas do vagão de passageiros, a estação ficando para trás. Como as lembranças.

Mas, por que escrever estas lembranças, se elas só tem importância para mim? Talvez porque completei 65 anos e estou na última etapa de minha vida. Também eu, como as velhas estações, estou passando e só me resta buscar refúgio na memória. Constato, como Bobbio, que “Se o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade; um mundo que se formou e se revelou na série ininterrupta de nossos atos durante a vida, encadeados uns aos outros, um mundo que nos julgou, nos absolveu e nos condenou para depois, uma vez cumprido o percurso de nossa vida, tentarmos fazer um balanço final. É preciso apressar o passo. O velho vive de lembranças e em funções de lembranças, mas sua memória torna-se cada vez mais fraca...”

Mas vamos em frente, como iam os velhos trens da Rede Mineira de Viação. “Nada de parar. Devemos continuar a escavar! Cada vulto, gesto, palavra ou canção, que parecia perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a sobreviver.” E sobrevivemos, como sobrevivem os barulhos do dia e as vozes da noite.



 
(23 de junho/2007)
CooJornal no 534


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com