Braz Chediak
VOZES DA NOITE |
|
Completo 65 anos e percorro alguns fatos da
infância, buscando fragmentos de minha história. Passo o dia refletindo na
velocidade do tempo e, quando escurece, “como a ave que volta ao ninho
antigo”, vou à casa de meus pais. Sento-me na velha sala, agora vazia, e
pouco a pouco identifico os mesmos sons do tempo em que eles viviam:
crianças brincando – outras crianças, certamente – os gritos das mães
chamando-as para o jantar ou para dormir, o latido dos cães e, mais
raramente, a conversa de alguns vizinhos comentando o último capítulo da
novela ou um jogo de futebol.
A noite está fria mas, mesmo assim, vou até o quintal. A água da casa está
desligada, o mato cobre o que outrora foram canteiros, mas as árvores
continuam belas e sinto o cheiro e o gosto das jabuticabas, das uvaias,
das limas, das goiabas... É a memória afetiva, a primeira e última
memória.
Sento-me na escada dos fundos, sob a mangueira. Por alguns instantes penso
que, até o momento da nossa morte, esta memória é como um moto contínuo a
nos lembrar origens, antepassados, histórias, mas, apesar de estar
sozinho, o ideal para refletir, não consigo articular os pensamentos. O
passado é grande demais para ser invadido por filosofias ou conclusões.
No silêncio, que agora é quase completo, só tem lugar para as vozes da
noite, com meu pai contando sobre o dia em que comprou o lote, como
construiu a casa, e minha mãe dizendo que era preciso ampliar a varanda,
fazer um quartinho para guardar os freezers que ficavam cheios quando a
família se reunia para o natal. Para eles “a casa” era o abrigo, o canto
inviolável onde podiam chorar as mágoas, rir as alegrias e,
principalmente, sonhar os sonhos.
Agora, revisitando-a, compreendo melhor as palavras de Bachelard, que já
citei tantas vezes: “A casa, na vida do homem, afasta contingências,
multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser
disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das
tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano.
Antes de ser “atirado ao mundo”...o homem é colocado no berço da casa. E
sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço... A vida começa
bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa”.
Já no fim da vida, minha mãe gostava de contar que, quando se casou, ela e
meu pai moraram num vagão de carga estacionado em frente à estação para
onde ele fora transferido. Isto, mais que uma história, era um símbolo da
vida que levariam. Como meu pai era ferroviário tornaram-se um casal
errante, morando em diversos lugares, em diversas estações. Mas nenhuma
era deles. Poderiam ter que sair a qualquer momento, bastava a necessidade
de preencher algum cargo em outro lugar ou o capricho de um diretor da
ferrovia. Havia sempre a possibilidade de partir.
Ainda me recordo das mudanças. Mudanças de pobre, com engradados de
galinhas, o cachorro “Palhaço” amarrado numa corda, bacias, canecas,
tachos, peneiras, o eterno frango com farofa – a gostosa matula -, minha
mãe contando os sete filhos para que não se perdessem, recomendando que um
segurasse na mão do outro, o trem partindo e, pelas janelas do vagão de
passageiros, a estação ficando para trás. Como as lembranças.
Mas, por que escrever estas lembranças, se elas só tem importância para
mim? Talvez porque completei 65 anos e estou na última etapa de minha
vida. Também eu, como as velhas estações, estou passando e só me resta
buscar refúgio na memória. Constato, como Bobbio, que “Se o mundo do
futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do
passado é aquele no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar
refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele
reconstruir nossa identidade; um mundo que se formou e se revelou na série
ininterrupta de nossos atos durante a vida, encadeados uns aos outros, um
mundo que nos julgou, nos absolveu e nos condenou para depois, uma vez
cumprido o percurso de nossa vida, tentarmos fazer um balanço final. É
preciso apressar o passo. O velho vive de lembranças e em funções de
lembranças, mas sua memória torna-se cada vez mais fraca...”
Mas vamos em frente, como iam os velhos trens da Rede Mineira de Viação.
“Nada de parar. Devemos continuar a escavar! Cada vulto, gesto, palavra ou
canção, que parecia perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a
sobreviver.” E sobrevivemos, como sobrevivem os barulhos do dia e as vozes
da noite.
(23 de junho/2007)
CooJornal
no 534