Braz Chediak
LINGUAGEM SECRETA |
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Gertrud Stein nos conta que “Os egípcios
antigamente tinham só uma língua, quer dizer para falar todos usavam só um
pouco de uma língua no dia-a-dia, mas quando se apaixonavam ou se dirigiam
ao herói deles, ou se comoviam, ou contavam histórias, então falavam uma
língua exaltada e cheia de imagens que agora já se tornou a língua
escrita, pois hoje em dia quando falam já não são mais exaltados e
utilizam apenas a língua comum o tempo todo e então esqueceram a língua da
exaltação que agora só é escrita jamais falada”.
Este fato, na maioria das vezes, nos lembra certos cronistas: para falar,
conversar um com os outros, comprar o pão na esquina ou a banana na feira,
usam as palavras cotidianas simples, comuns, mas quando escrevem a coisa
muda de figura, parecem lordes tão empolados que causam até urticária nos
leitores.
Geralmente, é assim também conosco, no dia a dia. Já observaram que quando
queremos revelar alguns sentimentos nós usamos a palavra escrita? Quem,
nos tempos atuais, grita numa rua ou numa praça o belo “eu te amo”, o
gostoso “estou apaixonado”? Quase ninguém. Nós amamos em silêncio, às
vezes até às escondidas.
Será que esta é uma característica do homem? Não sei, mas não é uma
característica da vida. Se, por exemplo, observarmos um canarinho na época
do acasalamento vemos que ele, quando encontra a fêmea, estufa o peito,
arrepia as penas e canta, e canta, e canta e chama a atenção do mundo com
seu pio, com seu grito: “eu estou amando, estou amando”. E ela compreende,
e se abaixa e se arrepia e ele sobe em seu pequenino corpo e a penetra e
faz-se a vida.
Também é assim com os grandes animais. O touro quando sente o cheiro da
fêmea no cio, cava ritualmente o chão e solta um mugido tão alto e
profundo que “cessa tudo que a antiga musa canta” e tudo se cala a seu
redor. É assim com tantos outros viventes que frequentemente me indago:
por que todos se manifestam diante do amor com tanta veemência, com tanto
alarde, com tanta beleza ao ponto de muitos pássaros mudarem de cor para
se enfeitarem para sua companheira? Por que outros adquirem postura divina
como, por exemplo o pavão que se torna um leque vivo e trêmulo de beleza?
Por que o pelo dos mamíferos se torna mais brilhante? Por que todos
cantam, gritam, anunciam aos quatro ventos a felicidade do encontro?
Nós humanos invertemos a história. Nós cochichamos, falamos baixinho o “eu
te amo, eu te amo” e, cá pra nós, como é gostoso este cochicho nestas
noites frias, com os corpos se aquecendo mutuamente, as peles
arrepiadas... Sim, mas por que só isto?
Há uma música de Jorge Ben que diz “lá vem ela de vestido branco, toda
molhada e despenteada que coisa linda, que maravilha ela é o meu amor...”.
Sim, que coisa linda, que maravilha ver a mulher amada se aproximar, e
correr para nós em busca do abraço e sentir que, como nós, a terra se
torna feliz e “toda fauna e flora fibra de amor”.
Por que tirar a música de nossas vidas? Por que caminhar com passos
comuns, manter etiquetas? Todos os dias, todas as horas vemos os
“selinhos”, os beijinhos nas faces, mas o beijo de amor entrou para o rol
das coisas escondidas. Manifestações escondidas.
Mas por que eu, um velho ranzinza, que não pertence à geração perdida, da
qual Gertrude Stein era um símbolo (aliás, em sua biografia ela nega ter
criado o termo e afirma tê-lo ouvido de um dono de hotel sobre um assunto
totalmente diferente) e nem tem nela, na Geração Perdida, seus escritores
favoritos, escolhi este assunto para uma crônica escrita numa fria manhã
de domingo? Coincidência? Talvez. Ou talvez porque com o passar do tempo
criamos, na crônica como no artigo de Gertrude Stein, uma linguagem
escrita com fragmentos do que vimos, do que sentimos, do que somos. Uma
linguagem de segredos que só nós compreendemos.
Não se dá pérolas aos porcos. Não se revelam segredos àqueles que não
podem compreendê-los. Para os alquimistas, “o segredo dos segredos é a
arte de fazer a pedra dos Sábios.” Para nós, velhos cronistas, o segredo é
repartir um pouco as alegrias, as tristezas e as indagações com nossos
três ou quatro leitores, mesmo que seja numa linguagem secreta. É nossa
linguagem, nós nos compreendemos. E que assim seja.
(09 de junho/2007)
CooJornal
no 532