05/05/2007
Ano 10 - Número 527


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



GENTE HUMILDE

Ontem à tarde, andando por uma rua na periferia de Três Corações, semelhante àquelas ruas de antigamente, sem calçamento, com “casas simples/com cadeiras na calçada/e na fachada/escrito em cima que é um lar”, vi uma jovem dependurando roupas num varal. O sol, ainda quente, refletia nos tecidos coloridos, na cerca de bambu, na grama, e, a seu lado, dentro de uma grande bacia, uma criança, com um bonequinho de madeira, brincava alegremente. Os dois, mãe e filho, estavam em harmonia com o céu brilhante, com a tarde, com a luz. Como Murilo Mendes, quase gritei: que bonito, moça ao varal...., mas me contive, guardei para mim a felicidade de ver e pertencer a esta gente humilde, “que vai em frente/sem nem ter com quem contar”.

Gente humilde, do interior, pois, numa cidade grande, como Rio de Janeiro ou São Paulo, não a sentimos plenamente, a não ser que sejamos poetas como Garoto, Chico Buarque e Vinícius, o barulho do trânsito nos impede de ouvir gritos de alegria ou de dor. A multidão nos empurra pelo fluxo das calçadas e não nos deixa ver um detalhe de um prédio, de um morro, de um barraco. Estamos mais atentos à televisão, entre quatro paredes, com medo de parar e apreciar uma cena do cotidiano. Aliás, o cotidiano da cidade grande é diferente, é mais individual, não paramos nem diante de um “corpo estendido no chão, no lugar do rosto a foto de um gol”. Não queremos ser testemunhas, não nos envolvemos. A poesia da vida e da morte tem outro significado e não existem mais mulheres estendendo roupas nos varais.

Santo Agostinho disse que “tudo quando é finito é curto”. É um flash, e por saber disto, senti ternura e tristeza. Ternura porque a criança estava feliz, porque os cabelos molhados da mulher caíam sobre os ombros e rebrilhavam como água numa cascata, porque seu vestido simples, quase transparente, colando à pele toda vez que o vento passava, permitia a visão dos contornos do corpo jovem, com a cintura definida, as ancas em “doce e recurvo declive”, a coxa maciça, as pernas perfeitas, as tetas sobressaindo na camiseta branca como jabuticabas maduras...

Tristeza por saber que aquela mulher e aquela criança acabarão tão rápido quanto as fotografias, as crônicas, os próprios sentimentos de ternura e de tristeza.

Creio que, em todos os tempos, o homem lutou contra a morte. Creio que só levamos na memória cenas, vozes, rostos, paisagens, porque nosso cérebro é um computador rápido e potente que, sabendo da finitude, procura registrar o máximo possível a eternidade do instante. Mas, na minha idade, o eterno tem a velocidade da pedra que, arremessada para cima, cai cada vez mais veloz até chegar ao chão, ao destino final.

Dizem que, na velhice, depois dos 60, cada ano que passa equivale a 5 de um jovem. Não é uma verdade científica mas, como meu laboratório sou eu, assumo o fato. Daqui a 5 anos, aquela criança na bacia já estará andando e falando, a jovem mãe estará com quase 30, seu corpo terá outra forma, sua alma estará mais marcada pela vida, e eu, se estiver vivo, estarei com 70 anos, isto é: perto do desembarque.

Por saber disto, parei e fiquei curtindo aquele instante, como um fotógrafo curte a luz ou o fato que registra com sua câmera e, por associação, lembrei-me de um diálogo do filme Alfhaville, de Godard:
- Você sabe o que transforma a noite em luz?
- A poesia.

A poesia que está em romances como o Grande Sertão: Veredas, em contos como os de Lygia Fagundes Telles, em crônicas como as de Rubem Braga, em músicas como as do Garoto, do Chico, do Vinícius e, por saber disto, eu, cronista interiorano, me esforço e, às vezes, encontro esta poesia numa criança tomando banho de bacia e numa mulher estendendo roupas num varal. Quando isto acontece, louvo a todos os artistas brasileiros, que me ensinaram e ensinam a ver nosso país, “e eu que não creio/peço a Deus por minha gente/é gente humilde-que vontade de chorar.”


 
(05 de maio/2007)
CooJornal no 527


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com