21/04/2007
Ano 10 - Número 525


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



OS JOVENS COMEM, OS VELHOS RECORDAM

Todas as vezes que leio a Bíblia, quando chego ao capítulo da expulsão de Adão e Eva do paraíso, sinto uma fome danada e corro à geladeira. Explico: é que estou na idade das recordações e a cena me faz retornar aos cheiros perdidos na infância, aos sabores descoberto na adolescência e aos sons ouvidos na juventude. Volto ao tempo perdido, sem “madeleines” mas rico em outras iguarias (se é que “madeleine” é uma iguaria).

O alho na frigideira, por exemplo. Som, cheiro e barulho do fritar me lembram a figura de minha mãe, com uma concha, engrossando o caldo do feijão, pingando algumas gotas na palma da mão para experimentar o tempero, degustando lentamente, concentrada. Sim, minha mãe se concentrava em cada gosto, cada cheiro, por isso o sabor de sua comida ficou eternamente em nós, filhos e netos, como uma obra de arte.

Havia, também, os cheiros e sabores que vinham das casas vizinhas, das padarias, das ruas. Na minha infância remota, na Rua da Cotia, todos sabíamos quando Dona Fulana estava torrando café ou quando Dona Sicrana fazia pés-de-moleque.

Perto da Subida do Herculano havia uma doceira tão boa que todas as crianças paravam em frente à sua casa, sentindo o aroma das cocadas e esperançosos que ela as chamasse para raspar o tacho, isto é, comer aqueles pedacinhos que ficavam grudados e que não compensava o trabalho de tirá-los e, em troca, lavar a grande vasilha de cobre.

Havia também os hotéis e restaurantes, tão distantes de nossos sonhos de filhos de ferroviários, mas que um dia consegui realizar quando meus pais viajaram e eu, em provas escolares, tive que ficar em Três Corações. Criança, não sabia fazer a própria comida e a solução encontrada foi que almoçasse no Bar Restaurante Pingüim, do Seu Joaquim Guaraná, que ficava quase na esquina da Rua 6 com a Rua Direita.

Foi a primeira vez que comi em Restaurante. Fiquei tão extasiado naquele ambiente solene, com aquela estatueta de um pingüim observando tudo, que até hoje, quando vejo o bichinho em algum programa de TV, ao invés de pensar na Antártida e seu frio pavoroso, penso em um grande e delicioso bife com batatas fritas. Foram dias inesquecíveis, eu era um cidadão tricordiano que comia em restaurante e isto, para mim, era uma coisa extraordinária.

Senti, é claro, preocupações de como me comportar a mesa, mas acho que me saí bem, pois minha mãe havia me dado algumas noções de etiqueta como, por exemplo, não dizer, nunca, “estou cheio”, mas sim “estou satisfeito”. Não dizer “chega”, mas “basta” e, principalmente, não colocar o dedo no nariz. Isto, é claro, além do básico “mastigar com a boca fechada”. Mas como ela se esqueceu de me ensinar para que servia o guardanapo, senti muita curiosidade do por que aquele pedaço de pano branco ao meu lado, olhando-o com o canto dos olhos, como um acessório misterioso, que não me pertencia, coisa dos moradores da cidade e não de nós, da Cotia.

Havia muitas diferenças, naquela época. Na Cotia tomávamos café em canecas, na cidade em xícaras. Comíamos em pratos de ágata, na cidade em pratos de louça. Diziam as más línguas que em algumas casas as pessoas comiam e bebiam chá ou cafezinho em pratos e xícaras de um negócio chamado porcelana.

Como sempre vivi em estações ferroviárias, por onde todas as novidades passavam, desde cedo aprendi a detectar cheiros e coisas estranhas como, por exemplo, as maçãs. Elas vinham numa caixa de madeira, enroladas, uma a uma, em papel de seda azul – Manzanas Rio Negro -, tinham um perfume que inundava tudo e uma cor maravilhosa. Minha boca enchia d’água só em pensá-las, mas como eram caras, muito além de nosso poder aquisitivo (expressão que nem existia na época), tomei aversão a elas. Associava-as a hospitais e doenças. Ainda hoje como maçãs com certa culpa. Não é fruta do meu coração, é coisa de argentinos e americanos e, se Adão e Eva foram expulsos do paraíso por causa de uma delas e porque lá não tinha nossas frutas tropicais ou “a história da maçã é pura fantasia...”. Hoje, já velho, começo a desconfiar que comeram a delicada fruta porque já estavam com outras intenções, pois dizem que fazer a coisa com o estômago cheio faz mal. Mas depois... depois pode ser que tenham se empanturrados de jabuticabas, goiabas, pitangas, marolos... já que eram jovens e os jovens, como se sabe, comem muito enquanto nós, velhos, só podemos recordar.


 
(21 de abril/2007)
CooJornal no 525


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com