07/04/2007
Ano 10 - Número 523


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



CÂMARA CASCUDO E OUTRAS ALEGRIAS

Quando lemos o nome de um grande intelectual, logo pensamos em um homem austero, de terno e gravata, com óculos fundo de garrafa, falando sempre coisas sérias, irretocáveis.

É muito provável que, nas pequenas cidades, ainda encontremos este tipo, mas quando se trata de um nome universal, um intelectual de fato, a realidade é outra. Em geral, por terem inteligências brilhantes, raciocínio rápido, são pessoas simples e têm um humor de fazer inveja aos próprios humoristas.

Nelson Rodrigues era famoso por suas frases, suas tiradas tão espirituosas que era impossível ficar perto dele sem rir. Nelson nos fazia rir de suas e de nossas próprias desgraças. Com meia hora de papo com ele, ficávamos leves, felizes...

Câmara Cascudo era outro. Gildson de Oliveira nos conta uma história que ilustra bem seu temperamento e que, por si só, é agradabilíssima. Vamos a ela:
“O lado boêmio de Cascudo às vezes incomodava dona Dahlia, sua esposa, que não perdia a oportunidade para meter bronca, como revela a filha jornalista Anna Maria Cascudo Barreto. Ela tinha seis anos de idade quando assistiu a um pequeno desentendimento do casal. Estava de camisola, com as tradicionais tranças compridas que desciam até às costas. Lembra que ouviu a mãe e o pai brigando, ela falando alto, o que não era comum na convivência do casal.
“Mamãe nunca alterava a voz, mas um dia explodiu de raiva:
- Luís, recebi um telefonema. Uma pessoa me contou que você estava na pensão de Maria Boa.
Segundo Anna, o pai, teatral e imediatamente, se ajoelhou no chão, juntou as mãos e disse:
- Que é isso Dahlia! A única mulher do mundo pra mim é você! Só amo você, nunca lhe fui infiel!
Dona Dahlia insistiu e perguntou:
- E como se explica você estar em casa de “mulheres de vida fácil”?
- Eu estava comendo um galeto, o melhor que se vende em Natal, e conversando com os amigos. Nem observei se tinha mulheres lá. E tinha?
A esposa achou a resposta o “cúmulo da irreverência e ironia”. A essa altura, pela fresta da porta, Anna Maria, que já sabia de alguns comentários “maldosos” de que o pai freqüentava bordéis e era boêmio, ficou escutando a briga e ouviu quando Cascudo para “provar” sua inocência daquela madrugada, ainda arriscou em sua defesa:
- Eu quero, se eu tiver sido infiel a você alguma vez, que esse teto caia sobre minha cabeça.
“Eu passei a noite todinha acordada, olhando para o telhado, com medo de que ele desabasse ali, como forma de castigo contra a mentira que eu estava ouvindo de papai...”

Câmara Cascudo foi amado e respeitado por escritores, compositores, cantores, etc., etc. Sua casa era aberta aos visitantes que chegavam, às dezenas, todos os dias, de todas as partes do mundo. Todos queriam compartilhar sua simpatia e saber. Rachel de Queiroz, Ary Barroso, presidentes da república, cantadores de feira... Cascudo era povo. E pelo povo foi homenageado, em prosa e verso. Versos como estes, do grande Patativa do Assaré:
“... Luís da Câmara Cascudo/Com seu profundo estudo/Sobre o folclore tratou/Na cultura popular/Foi o maior potiguar/Que o Rio Grande criou.
“Contava tudo a miúdo/Porque sabia de tudo/Conservava nos arquivos/Populares tradições/Lendas e superstições/E costumes primitivos.
“Do folclore foi patrono/Ergueu ali o seu trono/Com o dom que Deus lhe deu/Não há em nosso universo/Quem possa dizer em verso/O que ele em prosa escreveu.
“Eu não tenho competência/Para fazer referência/Sobre o seu grande saber/Falando de coisa antiga/Por mais que o poeta diga/Falta ainda o que dizer...

São estes autores, Nelson, Rachel, Ary Barroso, Patativa do Assaré que fazem do Brasil um país bem humorado, com um povo bonito, com molejo de cintura, que dribla as dificuldades do dia a dia sorrindo, cantando, construindo nossa memória de maneira leve, profunda, como a construiu Luís da Câmara Cascudo. Saravá, grandes mestres, saravá povo brasileiro.


 
(07 de abril/2007)
CooJornal no 523


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com