24/03/2007
Ano 10 - Número 521


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



A MENINA NO CANTO DA TELA

Abro o Messenger e, no alto, do lado direito da tela, aparece a fotografia da menina, bela, altaneira, com um olhar que mistura confiança e tristeza. Digito uma mensagem: “fala, minha jovem!”, e ela me responde imediatamente: “- Bom dia, Braz!”, ou “Como vai, Braz...” e iniciamos um diálogo digital, rápido, sem aprofundamentos, que quase sempre começa com uma pergunta da parte dela: “Ontem li uma palavra – “vitalidade” – e não consegui entender o significado.... Ou: “Você acha que se eu ler Voltaire vou entender?”

À primeira pergunta respondo colando no Messenger a definição do Aurélio: [Do lat. vitalitate.] S. f. 1. Qualidade de vital. 2. O conjunto das funções orgânicas. 3. Força vital; vigor. À segunda aconselho-a a ler o “Dicionário Filosófico”, ainda que ela tenha apenas 15 anos e não conheça, historicamente, certos fatos. O que importa é que ela está se despertando para a vida intelectual e, com alguma orientação, poderá se transformar numa grande e bela mulher e, ainda que minimamente, estou contribuindo para isto.

A foto foi feita por ela mesma, me disse. Como diretor de cinema sei que, além da simetria, o fotografado é como o fotógrafo o vê, e me alegrei porque ela se fotografou bela, se vê bela, e isto é importante para ser feliz.

Não sei qual o filósofo que indagou: “por que é que você me odeia tanto se nunca te fiz um bem?”. Durante minha vida constatei a veracidade desta filosofia. Nós só odiamos àqueles que nos são próximos e, em geral, que nos fizeram um bem, ainda que seja um pequeno bem. Se, diariamente, pagamos um pão para um mendigo, ele nos odiará no dia em que não o fizermos, mesmo que neste dia também estejamos com fome e sem um níquel no bolso. Se alguém ganhar cem milhões de dólares na loteria da China, não damos a menor atenção, mas se nosso vizinho, ou nosso irmão, ganhar apenas mil reais logo pensaremos: por que não eu? E imediatamente passaremos olhar a esse vizinho, ou irmão, com rancor e inveja.

Há muitos anos amei uma mulher com tanta intensidade que, depois do amor, quando ela ia para sua casa, eu passava horas tocando o lençol onde seu corpo se deitara ou acariciando a borda do copo onde ela bebera um vinho ou um whisky. Era um prazer único, intenso, cósmico. Várias vezes me flagrei de quatro adorando seu rastro como a um ícone sagrado. Nos sonhos ouvia sua voz, nos momentos de lucidez a sonhava. O mesmo acontecia com ela, me confessou muitas vezes. Mas nos separamos. E o que era amor virou ódio, o que antes era belo ficou feio, o que antes era carinho virou ofensa e, por este estranho mecanismo que temos em nós, até a memória do amor foi conspurcada.

Mas estou divagando. Comecei falando da menina do lado direito da tela e me enveredei por devaneios e memórias. Será este o destino dos velhos? Devanear e recordar? Não sei. Mas pode ser que sentimos com mais intensidade o prazer de ver uma imagem bonita num canto da tela do computador ou a beleza de uma inteligência se abrir como um grande girassol.

A ansiedade em uma adolescente é normal, pertence à própria idade, seu objeto é a descoberta da transitoriedade, isto é: da vida. Viver é coincidir, é procurar, e a menina do canto da tela se procura, cheia de vitalidade pois, como disse Paul Tillich, lá pelos anos 50: “Vitalidade é o poder de criar além de si próprio sem perder a si próprio.”. Ela está se criando, cultivando sua história, sua beleza, inteligência, coragem de se arriscar em novos contatos, em percorrer novos caminhos.

Olhando a fotografia, desejo ardentemente que sua inteligência continue aguda para buscar os significados e sutil para perceber que muitas vezes odiamos sem motivo, apenas por sermos humanos e reconhecermos no outro a nossa humanidade, que encontramos muitos amores e desamores pela vida e assim é feita nossa história.

Olhando a fotografia no canto da tela, clico em iniciar, em desligar o computador, em desativar e ela some. Mas em mim ficará para sempre, como ficou o hipotético milionário chinês, a mulher que conheci há tempos e ela, a menina, razão da crônica. 



 
(24 de março/2007)
CooJornal no 521


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com