17/03/2007
Ano 10 - Número 520


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



LINHAS PARALELAS

Quando morava no Rio, tive uma vizinha que em conseqüência de uma operação no cérebro perdeu o olfato e o paladar. Como não saía sozinha, vez por outra me pedia para acompanhá-la a Ipanema ou, raramente, ao Centro onde fazia suas compras. Uma tarde, passando em frente à Kopenhagen de Copacabana, viu um enorme bolo de chocolate na vitrine e, como uma criança que vê um brinquedo na mão de papai-noel, segurou-me o braço, gritou “Braz, olha que delícia... Igualzinho ao que mamãe fazia quando eu era pequena!” - e entrou na loja.

Apressada, dirigiu-se à balconista e pediu-lhe que embrulhasse um. A vendedora respondeu, delicadamente, que só vendiam bolos sob encomenda e ela, então, encomendou-lhe um, “igualzinho ao da vitrine. Sente só, o cheirinho de chocolate...”.

Enquanto minha vizinha provava dezenas de pequeninos bombons, perguntei à mocinha, que anotava o pedido:

- Por que você não vende aquele que já está feito? Assim ela leva logo! -. A jovem, com um sorriso delicado, respondeu-me:

- Aquele é mostruário. É de plástico.

Só então compreendi que, como tinha perdido alguns sentidos, minha amiga desenvolveu a memória sensorial, principalmente a memória dos cheiros e dos sabores. E, mais inacreditável, sentia, também, odores e gostos “imaginados”, chegando a reclamar que determinada comida tinha muito sal, quando às vezes não tinha sal nenhum, ou pouco sal, quando já estava salgada em excesso.

Não era uma implicante. Fazia isto como uma manifestação de vida, de participação naquilo que ela mais gostava: comer.

Hoje, quase 40 anos depois, este fato me volta à memória e observo que é comum guardarmos lembranças que provocam reações por prazeres ou desprazeres, falhas ou sucessos, vividos no passado.

Um exemplo comum é a separação dos amantes, ou dos casais que ainda se amam. No dizer de Igor Caruso, esta “separação amorosa provoca uma dor que talvez se inscreva entre as mais difíceis de suportar – se admitirmos que podemos suportá-la enquanto seres “normais”. Talvez por isto, frequentemente atribuímos ao “outro” todas as mazelas que a motivaram, todas as culpas.

É comum, quando os amantes se separam, depois do momento de perplexidade, nascer o mais terrível dos sentimentos: o ódio. É uma defesa. Nossa mente cria, ou amplia, situações em que o “outro” assume o posto de destruidor, do mau, do mal.

Recordo-me de um casal que se amava e se separou. Durante muitos anos a mulher, todas as tardes, quando os sinos da Matriz batiam as seis horas, abria a janela, esperava o ex-marido passar, exigia dele uma análise do “por que?” da separação e, invariavelmente, em sua mente apareciam todos os momentos negativos. O mesmo acontecia com o homem.

Como aquela minha amiga que perdera o paladar e o olfato, também eles não eram implicantes. Só que a primeira se agarrava ao passado como recompensa de uma perda, enquanto o casal se agarrava a ele como confirmação da perda. Para a primeira, os momentos bons eram cíclicos. Para o casal, reviver os momentos ruins era a maneira de não permitir o movimento de retorno.

A mulher que perdera alguns sentidos encontrou outros caminhos de prazer, na imaginação. O casal que se separou sabia que na frente havia muitos caminhos, mas que todos eles se encontravam no infinito. E um novo encontro significava reviver a grande dor. Por isto, como a mulher de Lot, ambos olhavam apenas para trás, se transformavam em estátua de sal.

Não sei se mulher que perdeu os sentidos está viva, não tenho notícias dela desde que me mudei do Rio.

O homem do casal amante morreu há cinco anos. A mulher, todas as tardes, quando os sinos batem, abre a janela e olha a rua. Ontem eu a vi. Ela tinha o olhar atônito de uma adolescente que espera o namorado e sabe que ele não vem.



 
(17 de março/2007)
CooJornal no 520


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com