24/02/2007
Ano 10 -
Número 517
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
UMA VIAGEM COMO OUTRA QUALQUER |
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Na década de 60, viajando pelo interior de Pernambuco, fiquei alguns dias
num pequeno vilarejo desabitado, composto por um círculo de casas
pequeninas, típicas da arquitetura que existia no interior nordestino,
construídas há centenas de anos, ao redor de uma igreja simples, singela
e, sobretudo, silenciosa. Um silêncio tão grande que à noite, de seu
interior, escutava o barulho das folhas ressecadas estalando há mais de
500 metros de distância.
Naquela época estava mergulhado na literatura francesa e indagações.
Acabara de ler a frase de Gide: “Para ver Deus, é necessário deixar o
mundo.” E andava com ela nos bolsos e nos lábios. Como contestar o poeta
se, naquela época, comíamos, bebíamos, respirávamos, vivíamos a cultura
francesa que julgávamos sagrada, mais sagrada que a grega, a romana ou a
egípcia? “Para ver Deus, é necessário deixar o mundo”. Eu não o deixava,
não o compreendia, não via Deus e ponto final.
Como não havia água no lugarejo, um velho tanoeiro, todas as tardes, vinha
me trazer um barril que enchia num velho e abandonado açude. Ele se
aproximava em silêncio, dividindo o peso da carga com seu jegue, fato que,
há princípio, me pareceu cômico, depois me comoveu. Em silêncio transferia
a água para a caixa da casa, sempre deixando um pouco para refrescar o
animal e, raramente, contava uma história, uma única história de quando
Lampião passara por ali.
Era um momento especial. Seus olhos se iluminavam, falava das festas, das
danças, das mulheres e, pelo entusiasmo, seu próprio corpo parecia
rejuvenescer.
Quando ele partia, sempre antes do anoitecer, caminhando sem montar em seu
jegue para não cansá-lo, sentava-me numa calçada de pedras, servia-me de
um generoso whisky e, na imaginação reconstituía os bailes na pracinha, os
sons das sanfonas e das rabecas, ouvia o arrastar de sandálias, o riso das
moças casadoiras, a gritaria das crianças.
Assim levava a vida, até que certo dia, com a fita da máquina muito gasta,
já quase sem o estoque de papel e sem livros para ler, fui a Recife me
reabastecer. Comprei os livros marxistas de praxe, os romances franceses
de praxe e, num gesto de curiosidade, um livrinho de cordel sobre São
Francisco de Assis.
De volta ao vilarejo, comecei a ler o cordel, talvez por achar que seria o
mais descartável, e imediatamente fui tocado por uma revelação: Francisco
de Assis, sem dizer uma palavra, sem esboçar um gesto, me mostrou que Gide
estava errado. Não era preciso deixar o mundo para ver Deus. Ele estava
ali, naquelas aves que se escondiam sob as folhas nos dias ensolarados, no
pequeno açude que teimava em continuar, nas casinhas cheias de história,
na pequena igreja e, à sua imagem, Ele estava naquele tanoeiro que tratava
seu jegue como irmão.
Sempre fui agnóstico, mas naquela noite, após ler aquele pequeno livro e
refletir sobre o homem e seu animal, sentei-me, sozinho, no interior da
pequena igreja e ouvi – ouvi com os ouvidos da alma - o farfalhar dos
espíritos atravessando a nave, saindo para o átrio, enchendo a praça, como
Pedro Páramos sertanejos, e com seus sonhos, com sua coragem, seus atos de
fé e de bravura, construir, ainda que de maneira penosa e rude, a história
de nossa pátria.
São Francisco dizia que o corpo é o burrico (jegue) que carrega a alma.
Outros dizem, com mais pompa, que o homem é o templo de Deus. Seja o que
for, aquele tanoeiro era o burrico e o templo, o museu móvel que
conservava e transportava a História escrita pelos espíritos, escrita pelo
passado de seu povo. E eu ali, ignorante, ouvindo sem perceber que aquelas
estórias eram o alimento que o mantinha para cumprir essa missão. E ele a
cumpria abrindo diariamente as portas deste museu para que ele não
perecesse.
Sim, é verdade, seus sonhos o levavam a mundos melhores, menos ásperos.
Suas recordações, de tanto serem contatas já haviam se modificado dentro
de sua mente e adquirido mais doçura. O que antes foi sofrido, com o
distanciar do tempo passou a ser bom. O que era pequeno tomou dimensões
épicas. Mas, não é assim com a vida?
Aquele tanoeiro e seu jegue já devem ter morrido há muitos anos. Não sei
se o lugarejo ainda existe. Eu já estou velho, ranzinza que, como todos os
velhos, vive desencavando histórias perdidas na memória e ainda tentando
compreender este nosso mundo. De vez em quando encontro com meus espíritos
e, sentado na varanda, bato longos papos com eles, sobre livros, crenças,
histórias de cordel ou velhos tanoeiros. São recordações. É uma maneira,
como outra qualquer, de esperar o trem que me levará à última viagem. A
viagem ao menor e mais humilde de todos os lugarejos, a infinita viagem ao
Grande OM.
(24 de fevereiro/2007)
CooJornal
no 517
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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