03/02/2007
Ano 10 -
Número 514
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
O BAÚ DAS PALAVRAS |
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O idioma é a pátria, o dicionário é o baú que guarda as palavras que
compõe este idioma. No dicionário podemos encontrar tudo, ou quase tudo já
que a língua é uma coisa viva e a cada instante novas palavras são
criadas, num movimento contínuo, semelhante à vida.
Abri-lo é como abrir a arca do tesouro. De A, uma vogal, a primeira letra
do nosso alfabeto, a Z, uma consoante, a 23ª, a última, as palavras formam
uma grande sinfonia que mostra a maneira de se expressar de um povo.
Seguindo a ordem alfabética, em cada letra, como num toque de mágica,
podemos achar palavras que expressam todos os nossos sentimentos, da
esperança ao desespero, da alegria à dor, do amor ao ódio, etc., etc.
Aliás, alegria e amor – duas coisas essenciais em nossas vidas - começam
pela primeira letra do alfabeto, coisa simbólica, assim como é simbólico
que, no Aurélio, a última palavra é Z-Zero, que quer dizer carga elétrica
nula, mediador das correntes neutras nas interações fracas.
Através dos tempos a palavra “PALAVRA” teve – e tem - vários significados,
dependendo da frase ou da entonação, podendo significar coisa inútil ou
coisa sagrada. Dalidá fez sucesso na década de 60 cantando “palavras,
palavras, palavras...” enquanto seu amante (na música interpretado por
Alain Delon) lhe fazia promessas. Ou seja, dando o sentido de falsidade,
traição, mentira, etc. Se você disser “Ah, aquele sujeito é só palavra”,
você pode dar a entender que ele é um conversa fiada, que fala e não faz.
Mas se você disser “aquele sujeito tem palavra”, é um elogio. Significa
que é uma pessoa confiável, digna, etc.
Algumas palavras trazem a beleza em seu próprio significado, como “PAZ”,
“AMOR”, “TRIGO”, por exemplo. Outras a feiúra, como “MENTIRA”, “ÓDIO”,
“RANCOR”, “FOME” – estas, Viviane Mosé nos ensina a limpá-las em seu poema
“COMO LAVAR PALAVRAS SUJAS”. Mas beleza e feiúra é um conceito individual.
Mário Prata, nosso querido dramaturgo, disse em crônica que acha feia a
palavra “JOELHO”. Creio que, na hora em que estava escrevendo, não se
lembrou de Nara Leão. Com ela, “JOELHO” se tornou uma palavra bonita,
provocante. Como disse Vinícius, Nara era “o joelho que canta”.
Eu não gosto de “cotovelo”. Me lembra “coto”, “velo”, ambas dando a idéia
de mutilação. E, para ser sincero, já sofri muitas dores de cotovelo e
bani esta palavra de meu cotidiano. Mas, sou um velho ranzinza, pois ambas
podem ser também sinônimos de coisas boas já que “coto” é a denominação de
um “instrumento japonês do século VII, de cordas dedilháveis e caixa de
ressonância longa e ligeiramente abaulada, pousada sobre o chão”. E “velo”
é o nome da lã, que faz nossos agasalhos de inverno.
O mais belo das palavras é sua liberdade. Elas são a enxada dos poetas,
dos cantores, dos atores e, principalmente, dos escritores, e estão aí
para quem quiser usá-las. Um poeta, apenas poeta, não pode exercer algumas
profissões, sob pena de ser processado, preso, acusado de falsidade
ideológica. Mas qualquer ser humano pode escrever um poema, como quiser,
onde quiser, pois a Arte é democrática, ela aceita a todos com o carinho
de uma amante, com a delicadeza de uma santa.
Durante longo período de minha vida trabalhei com as palavras. Algumas me
castigaram – as que eu disse de maneira indevida -, outras me abençoaram –
as que falei de maneira devida. Já pronunciei palavras raivosas, já disse
palavras de ternura. Já gritei o fel da minha boca e sussurrei o mel de
meu coração. Aliás, agora, escrevendo esta crônica, percebo que “fel” e
“mel” são rimas cujas diferenças são as primeiras letras e o antagonismo
do significado. Mas esta é a grandeza da existência, viver os antagonismos
da mesma maneira que vivemos a harmonia. Viver o “A” e o “Z”, o calor e o
frio, a treva e a luz.
Esta é nossa riqueza: abrir o baú das palavras que nos aproximam e, com
elas, cantar uma cantiga de amor ou, mesmo, um samba triste, de
desencontros. Mas cantar.
Cantar à toa, ou como constatou Carlos Lyra e Vinícius... Porque são
tantas coisas azuis/e há tão grandes promessas de luz/tanto amor para
amar/que a gente nem sabe...”.
Ave, palavra. Ave, João Guimarães Rosa, Machado, Graciliano. Ave,
Drummond, Bandeira, João Cabral, Murilo Mendes, Souzândrade. Ave, Chico,
Caetano, Gil, Vinícius, Milton... Ave todos aqueles que abriram o baú das
palavras para nos legar sua beleza. Ave.
(03 de fevereiro/2007)
CooJornal
no 514
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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