20/01/2007
Ano 10 -
Número 512
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
EU ADORO VIAJAR
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Precisando acertas alguns negócios no Rio e sabendo que teria carona para
voltar, com meu irmão que viria a Três Corações no domingo, corri a
Rodoviária, comprei uma passagem – só tinha corredor – e embarquei.
Sentei-me ao lado de uma senhora gorda com uma cestinha no colo que, logo
que o ônibus começou a andar, abriu um largo sorriso e perguntou para onde
eu ia. Com medo de um daqueles papos intermináveis, respondi com um “huumm”.
Ela mastigou, mastigou, fez uma bola com o chiclete, “poooopppppppp”,
estourou e fechou a janela.
A vizinha da frente tirou um saquinho de batatas fritas e, dizendo “eu
adoro viajar”, ofereceu a todos com um riso fininho. A mulher a seu lado,
uma magrinha com cara de galinha-d’angola, recusou fazendo uma careta:
- Não agüento mais nada. Estou até aqui da lingüiça que comi no churrasco
na casa do meu cunhado!
A que adora viajar começou a comer fazendo um roc-roc-roc com a boca
enquanto os farelos voavam para meu rosto.
Na terceira curva, o marido da galinha-d’angola olhou o filho a seu lado,
estufou o peito de Rambo e cochichou qualquer coisa para ela que olhou
para o menino e, ao ver que ele se se deitava na poltrona, amarrou a cara.
A Gorda do meu lado chacoalhou o corpo, quase me jogando fora da poltrona,
abriu um lado da cestinha de onde apareceu a cabeça de um cachorro
pequinês que fungou e começou a lamber-me o rosto. Afastei-me, tentando
detê-lo com a mão. A Gorda fechou a cara, dizendo alto “A Xuxa é limpa. E
tomou todas as vacinas!”
O halterofilista me olhou com cara feia. A Gorda pegou a Xuxa no colo e
passou-lhe o dedo no focinho: “-Bilu-bilu, Xuxa!!! Bilu-bilu, Xuxaaaaaa!!!!!!
A Vizinha da frente olhou de esguelha, ofereceu novamente as batatas e,
com seu risinho fino, confirmou, “eu adoro viajar”.
O cheiro das batatas se misturou ao da Xuxa, pensei em abrir a janela, mas
a Gorda me olhou com ferocidade. O menino fez um gesto de vômito. O Rambo
contraiu o bíceps, abriu uma sacola e tirou um saquinho de plástico
transparente. O menino fez o serviço e começou a ficar amarelo. O Rambo
jogou o saquinho pela janela, os “flocos” entrando pelo ônibus, enquanto a
galinha-d’angola esbravejava:
- Não falei? Churrasco na casa de seu irmão, nunca mais.
O menino sentiu ânsia novamente. O Rambo tirou outro saquinho e avisou:
- Só tem este de resto. Pode usar, mas não joga fora!
O menino tornou a fazer o serviço e, pálido, lábios brancos, continuou com
o saquinho balançando nas mãos. Procurei não olhar, mas a galinha d’angola
pegou o saquinho e o sacudiu na minha cara:
- Olha só. Gordura. Pura gordura!
Virei o rosto. Dei graças a Deus porque voltaria de carro e, espremido
pela Gorda, lambido pela Xuxa, sujo pelos farelos de batatas, ouvindo a
descrição da droga do churrasco, comecei a rezar para o tempo passar logo.
Foi quando ouvi um barulho estranho. O ônibus parou. O motorista desceu,
voltou em seguida: “-Tivemos um probleminha. Coisa rápida!”, fez uma
ligação pelo celular, mudou de lado o palito que tinha na boca,
encostou-se na poltrona e dormiu. Os passageiros começaram a se
confraternizar: uma velhinha, no último banco, descrevia o enterro do
marido, “uma beleza, vocês tinham que ver, tantas flores...”. Ao lado, um
baixinho de bigodes contava que a mulher fugira com um caminhoneiro, mas
tinha fé em Deus que ela voltaria, nem se fosse por causa das crianças. O
careca a seu lado concordava, “é preciso ter fé”, muita fé!”, a que
adorava viajar mastigava, “roc-cor-roc.”, a galinha-d’angola xingava a
cerveja quente, a picanha fria, o cunhado...
Duas horas depois chegou outro ônibus e partimos. Jurei nunca mais viajar
por aquela empresa e, para me consolar, pensei no carro de meu irmão onde
ninguém se espremia. Mas foi espremido, suado, faminto, com sede, que
cheguei ao Rio.
Desci do ônibus, corri para meu filho que me esperava, “estou louco pra
chegar em casa, tomar um banho...”, eu disse. Ele segurou meu braço: “- É
melhor comprar a passagem de volta. O tio teve problemas no trabalho, não
vai mais.
Senti um tremor no corpo, vi a gorda falando, falando, senti a cachorra me
lambendo, vi o saquinho transparente na mão do menino, escutei a
galinha-d’angola xingando a gordura, o cunhado, senti as pernas
fraquejarem, tudo escurecendo como se eu caísse numa cisterna funda de
onde só se ouvia o roc-roc-roc e a vozinha fina “eu adoro viajar... eu
adoro viajar.... eu adoro viajar...” Desmaiei.
(20 de janeiro/2007)
CooJornal
no 512
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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