25/11/2006
Ano 10 - Número 504


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



RÁPIDO, SIGA AQUELE CARRO

Um dos prazeres que sinto lendo a grande literatura policial da década de 20 ou 30 – Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Cornell Woolrich, etc., etc. – é reviver palavras, há muito esquecidas. “Mantô”, por exemplo, foi substituída por “casacão” ou “capote”, que não tem a mesma maciez, não desliza com suavidade sobre o vestido da mulher e, pior ainda, não toca com sutileza o corpo nu de alguma vamp fugindo do apartamento de um amante... onde aconteceu um crime.

A palavra é perfeita. A pele das mulheres de “mantôs”, parece mais branca – ou negra, ou sardenta, o que importa é o sentido de serem mulheres lunares, noturnas, não tomarem sol – do que daquelas que usam o casacão, que me lembram as hyppies da década de 60.

Mas não é só a palavra escrita que me fascina. Vendo os filmes policiais da época sinto grande ternura por aquelas personagens – vestidas com mantôs – com seus lábios grossos delineados por batom vermelho, seus sapatos de verniz, suas meias com costuras atrás, seus cabelos levemente ondulados, fugindo de algum gangster mal encarado ou discutindo com mocinhos durões, quase sempre com o cigarro aceso entre os dedos e dando imensas baforadas (vide Humphrey Bogart, Robert Mitchum, etc., etc.).

E os sons? Quem, de minha geração, não se recorda do barulho dos saltos-altos numa rua solitária, paralelepípedos molhados, lixo esparramado pela esquina? Bastava o som para adivinharmos a angústia do personagem em fuga.

Naquela época os filmes eram em preto-e-branco e as sombras também tinham significados, anunciavam a solidão ou o perigo, como tinha significado tudo o que existia em cada cena, em cada roupa, em cada gesto. Mas por que esta constatação agora, numa tarde de sábado ensolarado? Simples: gosto de literatura policial e sei que ela, no Brasil, até bem pouco tempo foi vítima de preconceitos por parte dos “intelectuais”, assim mesmo, entre aspas, e, consequentemente, deixada num segundo plano. Quem perdeu fomos nós, pois ficamos na rabeira desta grande arte que nos dá tanto prazer e, mais que nunca, agora se confirma como uma das melhores que se fez no século 20.

Mas, felizmente, não há mal que sempre dure nem bem que nunca se ature e, para comprovar o ditado, está ai a obra de Rubem Fonseca, Flávio Moreira da Costa, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Patrícia Melo, Joaquim Nogueira, Rubem Mauro Machado, Tabajara Ruas, José Louzeiro, Tony Bellotto, Jô Soares, etc., etc. que, como a chuva que penetra entre os paralelepípedos de uma rua sombria da Lapa, da Praça Mauá ou do centro de São Paulo, se infiltra entre os leitores, os envolve em prazer e os leva ao exercício de inteligência que esse segmento literário exige.

A nova geração de leitores brasileiros já estuda os autores de literatura policial como as anteriores estudavam Flaubert, Eça de Queiroz ou Tolstoi. Chandler, Hammett, Simenon, Manuel Vázquez Montalbán, Andréa Camilleri, Ross Macdonald, etc., etc., continuam sendo mestres. Mas, para nós, os brasileiros são mais importantes pois, além de mestres, nos revelam mazelas que são nossas.

Houve um tempo em que não nos permitíamos saborear palavras como “mantô”, nos deleitar com os sons dos saltos altos, os desenhos das sombras. Houve um tempo que, ao assistirmos um filme “noir”, ríamos quando um passageiro aflito dizia “motorista, rápido, siga aquele carro”. Mas este tempo está lá atrás, no passado. Nossa literatura policial andou na contra mão, subiu em passeios, avançou sinais. Nossos escritores saíram para as ruas, desceram ao submundo, nos revelaram um país não revelado e nos ajudaram, com seus enredos e personagens fascinantes, a pensá-lo como um país real, profundo. Atraíram os novos e, armados de talento e coragem, combatem “com unhas e dentes” a mesquinharia dos preconceitos. São eles que resgatam palavras esquecidas e captam palavras novas que surgem em todos os lugares. Vamos nos deleitar com o som sensual de “mantô” e o som travesso de “biquíni”, com o ritmo caliente do tango, com o som ancestral do jazz, a malícia do samba, a rebeldia do rap, etc., etc. Vamos nos deleitar com a grande literatura policial brasileira. Ela está aí e veio para ficar.
 
 

(25 de novembro/2006)
CooJornal no 504


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com