Braz Chediak
RÁPIDO, SIGA AQUELE CARRO |
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Um dos prazeres que sinto lendo a grande literatura policial da década de
20 ou 30 – Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Cornell Woolrich, etc.,
etc. – é reviver palavras, há muito esquecidas. “Mantô”, por exemplo, foi
substituída por “casacão” ou “capote”, que não tem a mesma maciez, não
desliza com suavidade sobre o vestido da mulher e, pior ainda, não toca
com sutileza o corpo nu de alguma vamp fugindo do apartamento de um
amante... onde aconteceu um crime.
A palavra é perfeita. A pele das mulheres de “mantôs”, parece mais branca
– ou negra, ou sardenta, o que importa é o sentido de serem mulheres
lunares, noturnas, não tomarem sol – do que daquelas que usam o casacão,
que me lembram as hyppies da década de 60.
Mas não é só a palavra escrita que me fascina. Vendo os filmes policiais
da época sinto grande ternura por aquelas personagens – vestidas com
mantôs – com seus lábios grossos delineados por batom vermelho, seus
sapatos de verniz, suas meias com costuras atrás, seus cabelos levemente
ondulados, fugindo de algum gangster mal encarado ou discutindo com
mocinhos durões, quase sempre com o cigarro aceso entre os dedos e dando
imensas baforadas (vide Humphrey Bogart, Robert Mitchum, etc., etc.).
E os sons? Quem, de minha geração, não se recorda do barulho dos
saltos-altos numa rua solitária, paralelepípedos molhados, lixo
esparramado pela esquina? Bastava o som para adivinharmos a angústia do
personagem em fuga.
Naquela época os filmes eram em preto-e-branco e as sombras também tinham
significados, anunciavam a solidão ou o perigo, como tinha significado
tudo o que existia em cada cena, em cada roupa, em cada gesto. Mas por que
esta constatação agora, numa tarde de sábado ensolarado? Simples: gosto de
literatura policial e sei que ela, no Brasil, até bem pouco tempo foi
vítima de preconceitos por parte dos “intelectuais”, assim mesmo, entre
aspas, e, consequentemente, deixada num segundo plano. Quem perdeu fomos
nós, pois ficamos na rabeira desta grande arte que nos dá tanto prazer e,
mais que nunca, agora se confirma como uma das melhores que se fez no
século 20.
Mas, felizmente, não há mal que sempre dure nem bem que nunca se ature e,
para comprovar o ditado, está ai a obra de Rubem Fonseca, Flávio Moreira
da Costa, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Patrícia Melo, Joaquim Nogueira, Rubem
Mauro Machado, Tabajara Ruas, José Louzeiro, Tony Bellotto, Jô Soares,
etc., etc. que, como a chuva que penetra entre os paralelepípedos de uma
rua sombria da Lapa, da Praça Mauá ou do centro de São Paulo, se infiltra
entre os leitores, os envolve em prazer e os leva ao exercício de
inteligência que esse segmento literário exige.
A nova geração de leitores brasileiros já estuda os autores de literatura
policial como as anteriores estudavam Flaubert, Eça de Queiroz ou Tolstoi.
Chandler, Hammett, Simenon, Manuel Vázquez Montalbán, Andréa Camilleri,
Ross Macdonald, etc., etc., continuam sendo mestres. Mas, para nós, os
brasileiros são mais importantes pois, além de mestres, nos revelam
mazelas que são nossas.
Houve um tempo em que não nos permitíamos saborear palavras como “mantô”,
nos deleitar com os sons dos saltos altos, os desenhos das sombras. Houve
um tempo que, ao assistirmos um filme “noir”, ríamos quando um passageiro
aflito dizia “motorista, rápido, siga aquele carro”. Mas este tempo está
lá atrás, no passado. Nossa literatura policial andou na contra mão, subiu
em passeios, avançou sinais. Nossos escritores saíram para as ruas,
desceram ao submundo, nos revelaram um país não revelado e nos ajudaram,
com seus enredos e personagens fascinantes, a pensá-lo como um país real,
profundo. Atraíram os novos e, armados de talento e coragem, combatem “com
unhas e dentes” a mesquinharia dos preconceitos. São eles que resgatam
palavras esquecidas e captam palavras novas que surgem em todos os
lugares. Vamos nos deleitar com o som sensual de “mantô” e o som travesso
de “biquíni”, com o ritmo caliente do tango, com o som ancestral do jazz,
a malícia do samba, a rebeldia do rap, etc., etc. Vamos nos deleitar com a
grande literatura policial brasileira. Ela está aí e veio para ficar.
(25 de novembro/2006)
CooJornal
no 504