18/11/2006
Ano 10 - Número 503


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



MEIAS DE LÃ E VINHO TINTO

Estava na feira o livro, conversando com José Ricardo, o livreiro de Varginha, quando Carlos chegou e abriu os braços sorrindo, falando alto: “Braz, quanto tempo! Mas... Você ainda não perdeu essa mania de ler?” Não cheguei a responder, ele puxou-me pelo braço: “Vem, vamos à minha casa. Deixa esse negócio de livros pra outra hora. A Lizinha vai ficar feliz em ver você!”

- “Lizinha?”, perguntei. E ele, eufórico, “É. Você não se lembra da Lizinha?”.

Eu me lembrava. Era uma jovem bonita, um corpaço, ar maroto no rosto, os cabelos negros... “Nós nos casamos. Vamos lá em casa, tomar um vinho...” e me envolveu de tal maneira que quando dei por mim já estava no carro.

Lizinha abriu a porta. “Braz, que alegria. Entra. Entra.” E beijou-me o rosto. Carlos sorriu: “Eu não falei que ela ia ficar feliz?” E virando-se para a mulher: “Convidei o Braz para tomar um vinho. Essa chuva pede um vinho tinto. Fica com ele que eu vou pegar as taças. Senta Braz. Senta”.

Abriu a porta da cozinha e uma rajada de vento entrou na sala. Lizinha cruzou os braços na frente do corpo, levando as mãos aos ombros, a pele se arrepiando dentro do vestido.

- Está muito frio, vou colocar uns sapatos! – ela disse e só então percebi que estava descalça. Que pés perfeitos, curvas perfeitas terminando nos dedos perfeitos, as unhas com esmalte natural, realçando a beleza. Lembrei-me de A PATA DA GAZELA, de José de Alencar, de Humbert Humbert passando esmalte nos delicados dedos de Lolita – Ah, Nabokov! -, das sandalinhas de Ema Bovary – Ah, Flaubert! – e até mesmo de Kierkegaard – quem diria! – se apaixonando ao ver os pés de Regina Olsen nos degraus no tílburi.

Ela voltou, agora com grossas meias de lã felpudas, sentou-se em minha frente e sorriu um sorriso luminoso, olhando-me nos olhos. Senti um toque na perna direita, como se pelos roçassem minha pele. Levei um choque. Olhei para a mulher, quis falar mas Carlos entrou na sala com as taças. A carícia em minha perna cessou e ouvi um “toc-toc” vindo dos tacos, como se fosse um código.

Não sei se senti prazer ou vergonha. Prazer por estar sendo acariciado por uma mulher tão bela, vergonha por estar traindo – ainda que em pensamentos – um amigo e, pior ainda, em sua própria casa. Carlos serviu o vinho, brindamos. Lizinha fez um “hummm!” de prazer e falou: “Meu bem, quem sabe você prepara um queijinho!”. Carlos foi à geladeira e novamente senti o toque suave, meu rosto ficando quente. Ele voltou. O carinho cessou. O toc-toc se repetiu. Agora eu tinha certeza, era um código. Ele deixou o queijo sobre a mesa, dizendo: “vou buscar uns pãezinhos!”. Novamente o roçar nas pernas. Novamente o toc-toc quando ele voltou à sala.

A situação continuou por longas horas e quando Carlos foi até a dispensa para buscar guardanapos resolvi falar, mas de minha boca saiu apenas um “ah-ah-ah-ah” que me deixou vermelho e suando. Lizinha sorriu: “Sempre tímido, não é Braz? Mas aqui você pode ficar à vontade!”.

Em meus pensamentos passavam magníficas suítes de motel, abraços ardentes, beijos apaixonados. Mas... Será que Carlos não desconfiava de nada? A dúvida tomou conta de minha cabeça. Gaguejei um “com licença”, fui ao banheiro e escrevi um bilhete marcando um encontro: “amanhã, às 10 h, atrás da igreja”. Voltei à sala, sentindo a cabeça meio zonza pelo vinho e pela emoção, peguei meu blusão, com o bilhete escondido entre os dedos, disse um “tenho que ir”. Vi os lábios molhados de Lizinha se movimentarem: “Ah, Braz toma mais uma taça!”, ouvi Carlos oferecendo mais um queijinho. Lizinha levantou-se, meu Deus, que corpo, Carlos disse “te levo de carro, vou pegar um casaco”. De novo o toc-toc e Lizinha a meu lado, e o toc-toc, e ela dizendo “volte sempre”, e a mão engastalhada na manga do blusão, e o toc-toc agora mais constante, foi me dando uma tremedeira e num esforço sobre-humano abri a mão com o bilhete, mas Lizinha virou-se para a mesa dizendo: “Dindinha, vai pra sua casa, vai!”. E vi uma enorme cadela fila sair de debaixo da mesa. Seu grosso rabo roçou a cadeira, como se fosse uma perna vestida de lã e, ao ouvir a voz de Carlos, bateu com ele no chão, toc-toc. Puxei a mão com o bilhete. Carlos perguntou “o que é isso, Braz”. “Nada não, é pipoca!” E enfiei o bilhete na boca, engoli, disse “não precisa de carro, vou à pé” e saí rápido. A chuva me entrando nos ossos, desci o Peró, a Chácara das Rosas, ouvi, de uma casa distante, a voz de Valdick Soriano “Eu não sou cachorro, não, pra viver tão humilhado. Eu não sou cachorro não pra ser tão desprezado...” Coincidência. Pura coincidência.

 

(18 de novembro/2006)
CooJornal no 503


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com