Braz Chediak
A CIDADE VISTA DA VARANDA |
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Ontem, enquanto bebia um whisky-solo na minha varanda, vi as luzes da
cidade lá embaixo - pequenina como uma cidade de brinquedo - e recordei-me
do personagem de Ricardo Piglia que constrói, incessantemente, a réplica
de uma grande cidade, num dos quartos de sua casa. “Não é um mapa nem uma
maquete, é uma máquina sinóptica; toda a cidade está ali, concentrada em
si mesma, reduzida a sua essência. A cidade é Buenos Aires, porém
modificada e alterada pela loucura e pela visão microscópica do
construtor.”, diz Piglia. “... ele passa meses sem sair de casa
reconstruindo periodicamente os bairros do sul, que o transbordamento do
rio arrasa e inunda sempre que chega o outono”. O homem “acredita que a
cidade real depende de sua réplica, e por isso está louco”.
O que tem este personagem de diferente, para nos intrigar tanto? Seu
“olhar”. Para manter viva sua obra ele tem que “olhar”, todos os dias, nos
mínimos detalhes, seu habitat como essência, isto é, seus movimentos,
cheiros, sons e, principalmente sua gente, sua vida. Enquanto nós, os
outros, não nos damos conta sequer de nossa casa, o “louco” vive o micro e
o macrocosmo do ser que se transforma continuamente, ininterruptamente:
sua cidade. Quem pode, assim de repente, lembrar-se com detalhes, por
exemplo, de uma árvore no quintal, a coloração das folhas, o balançar dos
galhos, o cheiro dos frutos maduros? Poucos, bem poucos. Talvez os poetas
que olham tudo como se fosse a última ou a primeira vez, ou eles, “os
loucos”.
Nós, seres comuns, passamos pela vida tão distraídos que, quando nos damos
conta, não temos como reconstituir nem mesmo os momentos ou sentimentos
que, de alguma maneira, foram importantes e nos ajudaram a ser o que
somos.
A língua portuguesa possui uma palavra que tem o sentido exato de um
sentimento universal: “saudade”. Saudade não é banzo, não é nostalgia, não
é recordação. É algo mais profundo que só essa palavra expressa. E que
grande vazio sentimos quando temos saudades de um lugar, de uma pessoa, e
não podemos visualizá-los com a clareza com que aquele homem de Buenos
Aires visualizava sua imensa e, ao mesmo tempo, minúscula cidade.
Mas, por que estes pensamentos nesta manhã tão clara de início de
primavera? Porque, ao acordar-me, lembrei-me de Glauce Rocha, a atriz, e
por instantes vi sua figura magnífica, recordei-me de sua voz rouca e,
principalmente, de sua admiração por Hermann Hesse. Em homenagem a ela fui
até à estante, peguei O LOBO DA ESTEPE e, ao folheá-lo, vi que o exemplar
que está comigo pertenceu a Nelson Rodrigues. Como tudo está interligado!,
pensei enquanto lia alguns trechos sublinhados em cujas margens mestre
Nelson fez anotações. Eis um deles, quando Harry, o Lobo, dá flores a
Ermínia: “... grata, muito grata. E aproveito para dizer-lhe que não quero
que me traga presentes. Vivo às custas dos homens, mas não quero viver à
sua custa...” Que personagem rodrigueano! Ela vive à custa de homens, mas
não daquele a quem compreende e ama. Recordei-me de OS 7 GATINHOS, de
BONITINHA, MAS ORDINÁRIA, etc., etc. e seus maravilhosos personagens
femininos que se prostituem, mas respeitam o amor como ele deve ser
respeitado: como uma coisa pura e boa.
Sim, como tudo se cruza, tudo se toca: o louco de Buenos Aires, Glauce,
Hesse e Nelson. Que grandes seres esses! Como viveram com a intensidade
que só os gênios vivem! Como sabiam elevar a vida simples, comum, em obras
de arte, transformando em grandiosas as pequenas criaturas. “A vida desse
infinito número de pessoas não atinge o trágico, mas apenas um infortúnio
considerável e uma desventura, em cujo inferno seus talentos engendram e
frutificam. Os poucos que se libertaram buscam sua recompensa no absoluto
e sucumbem no esplendor”, é outro trecho sublinhado. Nelson e Glauce
observaram e pensaram a vida dessas pessoas e perceberam suas venturas e
desventuras. Viram, mais que o lobo da estepe, o trágico e o humano de
cada uma delas.
Agora, aqui diante do computador, penso nesses grandes loucos, esses
grandes gênios que me ajudaram a ver o mundo como algo que pode e deve ser
modificado, até que um dia tenhamos, todos, o mesmo olhar. O mesmo
grandioso olhar que eles tiveram. O olhar do eterno que nos ajuda a
guardar na retina até as mais pequeninas luzes, como as luzes que vi
enquanto tomava o solitário whisky, sentado na varanda, vendo a cidade
como se fora uma cidade de brinquedo.
(14 de outubro/2006)
CooJornal
no 498