14/19/2006
Ano 10 - Número 498


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



A CIDADE VISTA DA VARANDA

Ontem, enquanto bebia um whisky-solo na minha varanda, vi as luzes da cidade lá embaixo - pequenina como uma cidade de brinquedo - e recordei-me do personagem de Ricardo Piglia que constrói, incessantemente, a réplica de uma grande cidade, num dos quartos de sua casa. “Não é um mapa nem uma maquete, é uma máquina sinóptica; toda a cidade está ali, concentrada em si mesma, reduzida a sua essência. A cidade é Buenos Aires, porém modificada e alterada pela loucura e pela visão microscópica do construtor.”, diz Piglia. “... ele passa meses sem sair de casa reconstruindo periodicamente os bairros do sul, que o transbordamento do rio arrasa e inunda sempre que chega o outono”. O homem “acredita que a cidade real depende de sua réplica, e por isso está louco”.

O que tem este personagem de diferente, para nos intrigar tanto? Seu “olhar”. Para manter viva sua obra ele tem que “olhar”, todos os dias, nos mínimos detalhes, seu habitat como essência, isto é, seus movimentos, cheiros, sons e, principalmente sua gente, sua vida. Enquanto nós, os outros, não nos damos conta sequer de nossa casa, o “louco” vive o micro e o macrocosmo do ser que se transforma continuamente, ininterruptamente: sua cidade. Quem pode, assim de repente, lembrar-se com detalhes, por exemplo, de uma árvore no quintal, a coloração das folhas, o balançar dos galhos, o cheiro dos frutos maduros? Poucos, bem poucos. Talvez os poetas que olham tudo como se fosse a última ou a primeira vez, ou eles, “os loucos”.

Nós, seres comuns, passamos pela vida tão distraídos que, quando nos damos conta, não temos como reconstituir nem mesmo os momentos ou sentimentos que, de alguma maneira, foram importantes e nos ajudaram a ser o que somos.

A língua portuguesa possui uma palavra que tem o sentido exato de um sentimento universal: “saudade”. Saudade não é banzo, não é nostalgia, não é recordação. É algo mais profundo que só essa palavra expressa. E que grande vazio sentimos quando temos saudades de um lugar, de uma pessoa, e não podemos visualizá-los com a clareza com que aquele homem de Buenos Aires visualizava sua imensa e, ao mesmo tempo, minúscula cidade.

Mas, por que estes pensamentos nesta manhã tão clara de início de primavera? Porque, ao acordar-me, lembrei-me de Glauce Rocha, a atriz, e por instantes vi sua figura magnífica, recordei-me de sua voz rouca e, principalmente, de sua admiração por Hermann Hesse. Em homenagem a ela fui até à estante, peguei O LOBO DA ESTEPE e, ao folheá-lo, vi que o exemplar que está comigo pertenceu a Nelson Rodrigues. Como tudo está interligado!, pensei enquanto lia alguns trechos sublinhados em cujas margens mestre Nelson fez anotações. Eis um deles, quando Harry, o Lobo, dá flores a Ermínia: “... grata, muito grata. E aproveito para dizer-lhe que não quero que me traga presentes. Vivo às custas dos homens, mas não quero viver à sua custa...” Que personagem rodrigueano! Ela vive à custa de homens, mas não daquele a quem compreende e ama. Recordei-me de OS 7 GATINHOS, de BONITINHA, MAS ORDINÁRIA, etc., etc. e seus maravilhosos personagens femininos que se prostituem, mas respeitam o amor como ele deve ser respeitado: como uma coisa pura e boa.

Sim, como tudo se cruza, tudo se toca: o louco de Buenos Aires, Glauce, Hesse e Nelson. Que grandes seres esses! Como viveram com a intensidade que só os gênios vivem! Como sabiam elevar a vida simples, comum, em obras de arte, transformando em grandiosas as pequenas criaturas. “A vida desse infinito número de pessoas não atinge o trágico, mas apenas um infortúnio considerável e uma desventura, em cujo inferno seus talentos engendram e frutificam. Os poucos que se libertaram buscam sua recompensa no absoluto e sucumbem no esplendor”, é outro trecho sublinhado. Nelson e Glauce observaram e pensaram a vida dessas pessoas e perceberam suas venturas e desventuras. Viram, mais que o lobo da estepe, o trágico e o humano de cada uma delas.

Agora, aqui diante do computador, penso nesses grandes loucos, esses grandes gênios que me ajudaram a ver o mundo como algo que pode e deve ser modificado, até que um dia tenhamos, todos, o mesmo olhar. O mesmo grandioso olhar que eles tiveram. O olhar do eterno que nos ajuda a guardar na retina até as mais pequeninas luzes, como as luzes que vi enquanto tomava o solitário whisky, sentado na varanda, vendo a cidade como se fora uma cidade de brinquedo.
 

(14 de outubro/2006)
CooJornal no 498


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com