Braz Chediak
ENQUANTO ABASTEÇO O VELHO FIAT |
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Volta
e meia dou uma olhada na Bíblia, este livro perfeito, onde cada autor
escreveu seu capítulo em estilo exato e belo, este livro que é uma lição
de arte aberta, de estrutura fechada e do que mais a gente pensar. Também
uma lição de humanidade, de grandeza e de humildade onde as parábolas se
transformam em lições de vida.
Mas por que esta constatação agora, nesta crônica? Explico: a Bíblia, se
me permitem os estudiosos, é um livro em movimento. Um livro que se adapta
a todos os tempos, a todos os instantes, a todos os fatos sociais e a
todos os estados de espírito. É o livro das transformações.
E foi sobre as transformações pelas quais passamos durante nossas vidas
que o Edison Albano me fez a observação, enquanto eu abastecia meu velho
Fiat 147: “Nossa geração foi abençoada por acompanhar tantas mudanças.
Vimos o homem domar energias até então desconhecidas, ultrapassar a
velocidade do som, conquistar o espaço, descer na lua, lançar aparelhos de
pesquisas para Marte, vimos o surgimento do celular, do computador, da
Internet... Reduzimos o tempo e o espaço: podemos conversar com Nova
Iorque ou Paris em poucos segundos, podemos ver imagens de partidas de
futebol ou de guerras no momento em que elas acontecem. Podemos ver e
ouvir uma criança brincando no Japão ou morrendo na África. Dia a dia a
ciência cria novos medicamentos, novas curas... tudo continua evoluindo,
mas ainda não conquistamos a paz, a saúde e a liberdade plena!”
A verdade que o Edison me revelava era uma verdade bíblica e ouvi em
silêncio, enquanto ele continuava: “Escuta, Braz, o homem precisa de pouco
para viver, basta um teto, um cobertor, o alimento e a dignidade.
Sobretudo a dignidade. Sei que o passado é importante, é nossa história.
Sei que o futuro é importante, é para lá que caminhamos. Mas o homem deve
viver o momento. E se viver o momento com dignidade, seu futuro será
melhor, muito melhor. O passado deixará de ser um peso, será uma página
leve e alegre na memória...”
Como sou velho, e os velhos costumam pensar a vida através de recordações,
me senti caminhando com Nelson Rodrigues na Avenida Atlântica e ele, ao
ver tanta gente na praia em plena segunda-feira, dar um grito indignado:
“Chediak, o país está em construção e o brasileiro está na praia...”
O País está em construção, mas quantos de nós temos consciência disto?
Voltando ao presente ouvi o Edison praticamente responder ao velho mestre:
“Nós somos um país abençoado, dizemos isto a toda hora, mas ainda não
vivemos com plenitude esta benção... O Brasil não quer dominar o mundo,
quer apenas fazer parte dele com dignidade. Para isto temos que trabalhar,
trabalhar, trabalhar...”
Pouco depois despedi-me do Edison e, passeando pelos bairros de periferia,
refleti sobre suas palavras e sobre as palavras do Nelson. Será o trabalho
o caminho para a felicidade humana? Sim, pelo menos para a felicidade
daqueles que arregaçam as mangas e constroem um país melhor. Um país onde,
um dia, todos terão paz, saúde e liberdade, todos terão um teto e o pão
nosso de cada dia, todos sentirão a alegria do dever cumprido e do
reconhecimento de sua obra.
Comecei falando da Bíblia e volto a ela: “Tudo que meus olhos desejaram
não lhes neguei, nem privei meu coração de alegria alguma. E meu coração
se alegrou por todo o meu trabalho. Esta foi a minha porção de todo o meu
trabalho.”, diz o Eclesiastes. E foi com esta porção de trabalho e alegria
que o Edson viu nossa geração. Uma geração que viveu período de luzes, de
trevas e de novas luzes, que viveu mais intensamente que qualquer outra,
que viu mais mudanças que qualquer outra, e, principalmente, que se
conscientizou que nossa vida não é um ato isolado, que estamos todos
unidos ao grande criador e fazemos parte do mesmo planeta, que somos
irmãos das plantas, dos rios, dos animais da terra e dos pássaros do céu,
e precisamos preservá-los para que nos preservemos. Uma geração que errou
e acertou, mas sobretudo uma geração que sonhou, desejou e repetiu com
Lucas, 2.14: Paz na terra aos homens de boa vontade.
(16 de setembro/2006)
CooJornal
no 494