16/09/2006
Ano 10 - Número 494


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



ENQUANTO ABASTEÇO O VELHO FIAT
 

Volta e meia dou uma olhada na Bíblia, este livro perfeito, onde cada autor escreveu seu capítulo em estilo exato e belo, este livro que é uma lição de arte aberta, de estrutura fechada e do que mais a gente pensar. Também uma lição de humanidade, de grandeza e de humildade onde as parábolas se transformam em lições de vida.

Mas por que esta constatação agora, nesta crônica? Explico: a Bíblia, se me permitem os estudiosos, é um livro em movimento. Um livro que se adapta a todos os tempos, a todos os instantes, a todos os fatos sociais e a todos os estados de espírito. É o livro das transformações.

E foi sobre as transformações pelas quais passamos durante nossas vidas que o Edison Albano me fez a observação, enquanto eu abastecia meu velho Fiat 147: “Nossa geração foi abençoada por acompanhar tantas mudanças. Vimos o homem domar energias até então desconhecidas, ultrapassar a velocidade do som, conquistar o espaço, descer na lua, lançar aparelhos de pesquisas para Marte, vimos o surgimento do celular, do computador, da Internet... Reduzimos o tempo e o espaço: podemos conversar com Nova Iorque ou Paris em poucos segundos, podemos ver imagens de partidas de futebol ou de guerras no momento em que elas acontecem. Podemos ver e ouvir uma criança brincando no Japão ou morrendo na África. Dia a dia a ciência cria novos medicamentos, novas curas... tudo continua evoluindo, mas ainda não conquistamos a paz, a saúde e a liberdade plena!”

A verdade que o Edison me revelava era uma verdade bíblica e ouvi em silêncio, enquanto ele continuava: “Escuta, Braz, o homem precisa de pouco para viver, basta um teto, um cobertor, o alimento e a dignidade. Sobretudo a dignidade. Sei que o passado é importante, é nossa história. Sei que o futuro é importante, é para lá que caminhamos. Mas o homem deve viver o momento. E se viver o momento com dignidade, seu futuro será melhor, muito melhor. O passado deixará de ser um peso, será uma página leve e alegre na memória...”

Como sou velho, e os velhos costumam pensar a vida através de recordações, me senti caminhando com Nelson Rodrigues na Avenida Atlântica e ele, ao ver tanta gente na praia em plena segunda-feira, dar um grito indignado: “Chediak, o país está em construção e o brasileiro está na praia...”

O País está em construção, mas quantos de nós temos consciência disto? Voltando ao presente ouvi o Edison praticamente responder ao velho mestre: “Nós somos um país abençoado, dizemos isto a toda hora, mas ainda não vivemos com plenitude esta benção... O Brasil não quer dominar o mundo, quer apenas fazer parte dele com dignidade. Para isto temos que trabalhar, trabalhar, trabalhar...”

Pouco depois despedi-me do Edison e, passeando pelos bairros de periferia, refleti sobre suas palavras e sobre as palavras do Nelson. Será o trabalho o caminho para a felicidade humana? Sim, pelo menos para a felicidade daqueles que arregaçam as mangas e constroem um país melhor. Um país onde, um dia, todos terão paz, saúde e liberdade, todos terão um teto e o pão nosso de cada dia, todos sentirão a alegria do dever cumprido e do reconhecimento de sua obra.

Comecei falando da Bíblia e volto a ela: “Tudo que meus olhos desejaram não lhes neguei, nem privei meu coração de alegria alguma. E meu coração se alegrou por todo o meu trabalho. Esta foi a minha porção de todo o meu trabalho.”, diz o Eclesiastes. E foi com esta porção de trabalho e alegria que o Edson viu nossa geração. Uma geração que viveu período de luzes, de trevas e de novas luzes, que viveu mais intensamente que qualquer outra, que viu mais mudanças que qualquer outra, e, principalmente, que se conscientizou que nossa vida não é um ato isolado, que estamos todos unidos ao grande criador e fazemos parte do mesmo planeta, que somos irmãos das plantas, dos rios, dos animais da terra e dos pássaros do céu, e precisamos preservá-los para que nos preservemos. Uma geração que errou e acertou, mas sobretudo uma geração que sonhou, desejou e repetiu com Lucas, 2.14: Paz na terra aos homens de boa vontade.
 

(16 de setembro/2006)
CooJornal no 494


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com