12/08/2006
Ano 10 - Número 489


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



O FOGÃO

 

Ontem à tarde, para espantar o frio, fui até um botequim perto de casa, pedi um copo de vinho e, como de hábito, fiquei observando as pessoas. Um velho passou encorujado, mãos nos bolsos, golas levantadas. Um vira-latas deitou-se sob a mesa de canto, tremendo. Uma jovem de cabelos longos, luvas pretas, atravessou a rua abraçada à pasta escolar. Um carroceiro, em mangas de camisa, transportando um gasto fogão azul, passou orgulhoso. A seu lado um menino descalço, também em mangas de camisa, sorria. Até mesmo o cavalo, um velho pangaré, me pareceu cheio de si, com orelhas eretas e cabeça levantada. Eles, homem criança e cavalo pareciam não sentir frio, estavam à vontade, relaxados, alegres.

Olhei-os atentamente, até que dobraram a esquina, indaguei-me o por que daquela alegria e fiquei com a imagem balançando no trapézio de minha cabeça como um personagem de Machado de Assis. À noite, fazendo um balanço dos fatos, voltei ao carroceiro e compreendi: como meu pai era ferroviário moramos quase toda nossa vida em estações de roça onde os fogões eram a lenha e o fogo a fonte de nossas alegrias, já que aquecia a casa e significava que tínhamos o café-com-leite quentinho nas manhãs de inverno, o arroz e o feijão no almoço, a sopa fumegante no jantar. Era uma constante as brasas acesas durante todo o dia e, sobre a trempe, uma panela com água e um bule de café em banho-maria.

Era em volta do fogão que as mulheres, em dias de festas, se reuniam preparando as rabanadas, os lambaris fritos, as costelinhas de porco e nos espantando já que: “cozinha não é lugar de criança”. Era também numa mureta do fogão que, nas noites de inverno, meu pai se sentava e, sob a luz de uma lamparina, lia seus livros esquentando os pés nas brasas dormidas e, talvez, sonhando com mundos distantes e desconhecidos ou, quem sabe?, com uma simples lâmpada elétrica.

Mais tarde, quando nos mudamos para a cidade, compraram um fogão a gás. Foi uma festa, as crianças correndo para a cozinha, minha mãe, com medo de alguma explosão, nos mandando sair de perto e meu pai, corajosamente, acendendo o fósforo e explicando didático como o gás deveria ser aberto, aceso e, posteriormente, fechado no botão do fogão e no registro do bujão. O arear das panelas foi substituído pelo bombril e as brasas, que conservavam o café sempre quentinho, pela garrafa térmica.

Não sou “ligado” ao passado - acho que hoje o mundo é melhor -, não me importo com a passagem do tempo mas, como disse Bérgson, “Em vão a observação imediata nos mostra que o próprio fundo da nossa existência consciente é a memória, isto é, o prolongamento do passado no presente...” Sim, em vão. Pois deste prolongamento estão sempre surgindo imagens que nos remetem às recordações.

Bérgson continua: “O tempo não terá mais realidade para um ser vivo do que para uma ampulheta, na qual o reservatório superior se esvazia enquanto o de baixo se enche, e na qual se pode fazer voltar as coisas aos seus lugares invertendo a posição do aparelho.” E em nós, em nossa memória afetiva, a ampulheta está sendo sempre invertida e agora, escrevendo esta crônica, imagino que numa cozinha aquecida, a mesa posta, o fogão azul sobressaindo-se como uma imagem num altar, o carroceiro e a criança tomam uma boa sopa de fubá, como aquela que minha mãe fazia em todos os invernos de nossa casa e que meu pai, à cabeceira da mesa coberta por uma toalha branquinha, feita de sacos de açúcar alvejados, degustava com prazer.

“Pra hoje Deus deu”, foi a oração que ouvi de uma pobre nordestina na única refeição do dia, e que compartilhei com sua família sentado na soleira da porta do casebre coberto de palhas de coqueiro. Era, talvez, sua última porção de farinha, mas o fogo continuava aceso na cozinha, como se nos lembrasse que todos temos direito ao pão de cada dia.

A esta hora, nesta cidade de Três Corações, os bares estão fechados, as ruas estão vazias, mas os fogões permanecem acesos em minha memória. Diante do computador repito a oração da velha nordestina: “Pra hoje Deus deu”. O pão, o vinho, as recordações e “A fim de animar minha tímida lâmpada/A vasta noite acende todas as suas estrelas”, como no poema de Tagore.

* À memória de meu pai, pelos sonhos e por ter me ensinado a sonhar.




(12 de agosto/2006)
CooJornal no 489


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com