Braz Chediak
O BEIJO |
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Ouvindo a música de Jorge Mautner, “o bico do beija-flor beija
a flor, beija a flor, beija a flor e toda fauna e flora grita de amor...”
recordo-me de Henry Miller dizendo que o beijo é muito mais importante que
o sexo. É uma verdade simples, mas quase despercebida, que me faz refletir
sobre a grande maioria dos casais que ainda mantêm relações sexuais, de
maneira burocrática, com a mulher soltando suspiros e gemidos ensaiados e
o homem com a ereção sem desejo, sem perceberem que o amor terminou quando
um dos parceiros recusou, pela primeira vez, o beijo na boca. Depois da
recusa, apenas se toleram, vivem juntos, talvez com medo de novos
encontros, de novos e desconhecidos beijos.
Rachel de Queiroz, na crônica O CASO DOS BEM-TE-VIS,
nos presenteia com um tipo de beijo que quase nunca percebemos: o
beijo entre dois passarinhos. Eis um trecho: “Era um casal de
bem-te-vis apaixonados. Voavam e pousavam, naquela primeira fase de amor
de passarinho; namoro de asa e bico, entre o céu claro e a copa mais alta
das árvores, ai, tão parecido com namoro de gente – com a diferença de que
a gente não pode voar.”
A história se passa no Rio e os pássaros voam e assentam,
também, entre prédios, torres, postes e fios. “Fios juntos,
paralelos – haverá poleiro mais lírico para passarinhos em estado de amor?
A bem-te-vi donzela pousou no fio à direita, o bem-te-vi mancebo
impetuosamente baixou sobre o fio fronteiro. E, naquela confrontação de
fio a fio, trocaram o primeiro beijo.”
“Jamais, na história dos homens e dos bichos, teve um beijo
tão tremendas conseqüências. Porque os inocentes passarinhos, cada um
pousado no fio condutor de 44 mil volts, naquela rápida carícia de bico a
bico, criaram um curto-circuito...” Ambos morreram instantaneamente e, de
maneira terrível, instalou-se o caos. Trens deixaram de funcionar,
impossibilitando quase meio milhão de usuários de chegar ao trabalho,
fábricas deixaram de funcionar, elevadores ficaram parados, etc., etc.
Rachel diz que “só o beijo imortal trocado por Helena e o pastor Páris,
que desencadeou o lançamento de mil navios e causou a guerra de Tróia,
pode lhe ser comparado.”
Que mistérios tem o beijo? O que é que o faz tão presente em
nossa memória? Quem não se lembra da emoção do primeiro beijo, talvez
roubado numa varanda ou numa rua solitária? Quem não se lembra da tristeza
do último beijo, quando nos separamos, ainda amantes, ainda amando? Quem
não se lembra do ardente desejo do beijo não dado, que fica na carne como
um espinho dolorido? Que leitor não se lembra de Romeu e Julieta, de Bento
e Capitú, de Riobaldo e Diadorim?
Minha geração cresceu tendo o beijo como símbolo de final
feliz, antes do THE END que preenchia as telas dos cinemas. Ainda que
recitássemos que “o beijo, amigo, é a véspera do escarro” de Augusto dos
Anjos, nos sentimos na pele de Clark Gable quando ele beijou Olívia de
Havilland (ou será Vivien Leigh?) em E O VENTO LEVOU, sentimos um nó na
garganta quando Ingrid Bergman partiu com Paul Henreid, sem beijar
Humphrey Bogart em CASABLANCA.
Talvez o primeiro beijo tenha sido o caricioso sopro dado por
Deus para nos criar a alma, a vida, (Gênesis, 2:7). Talvez o mais famoso
seja o de Judas, para condenar Jesus. Talvez o mais simples seja aquele
que receberemos, um dia, dado pela morte.
Não sei se alguém já escreveu sobre a sociologia ou a história
do beijo. Aliás, melhor é não estudá-lo, mas senti-lo. Um roçar de
lábios apaixonados vale mais que mil tratados sociológicos, filosóficos,
etc., etc. É por ele que “toda fauna e flora grita de amor”. Um amor tão
grande quanto o dos beija-flores, tão grande quanto o daquele casal de
bem-te-vis, dos quais Rachel extraiu sua crônica, e tão simples que só os
santos e os artistas podem compreendê-lo.
(29 de julho/2006)
CooJornal
no 487