29/07/2006
Ano 9 - Número 487


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



O BEIJO

 

Ouvindo a música de Jorge Mautner, “o bico do beija-flor beija a flor, beija a flor, beija a flor e toda fauna e flora grita de amor...” recordo-me de Henry Miller dizendo que o beijo é muito mais importante que o sexo. É uma verdade simples, mas quase despercebida, que me faz refletir sobre a grande maioria dos casais que ainda mantêm relações sexuais, de maneira burocrática, com a mulher soltando suspiros e gemidos ensaiados e o homem com a ereção sem desejo, sem perceberem que o amor terminou quando um dos parceiros recusou, pela primeira vez, o beijo na boca. Depois da recusa, apenas se toleram, vivem juntos, talvez com medo de novos encontros, de novos e desconhecidos beijos.

Rachel de Queiroz, na crônica O CASO DOS BEM-TE-VIS, nos presenteia com um tipo de beijo que quase nunca percebemos: o beijo entre dois passarinhos. Eis um trecho: “Era um casal de bem-te-vis apaixonados. Voavam e pousavam, naquela primeira fase de amor de passarinho; namoro de asa e bico, entre o céu claro e a copa mais alta das árvores, ai, tão parecido com namoro de gente – com a diferença de que a gente não pode voar.”     

A história se passa no Rio e os pássaros voam e assentam, também, entre prédios, torres, postes e fios. “Fios juntos, paralelos – haverá poleiro mais lírico para passarinhos em estado de amor? A bem-te-vi donzela pousou no fio à direita, o bem-te-vi mancebo impetuosamente baixou sobre o fio fronteiro. E, naquela confrontação de fio a fio, trocaram o primeiro beijo.”

“Jamais, na história dos homens e dos bichos, teve um beijo tão tremendas conseqüências. Porque os inocentes passarinhos, cada um pousado no fio condutor de 44 mil volts, naquela rápida carícia de bico a bico, criaram um curto-circuito...”  Ambos morreram instantaneamente e, de maneira terrível, instalou-se o caos. Trens deixaram de funcionar, impossibilitando quase meio milhão de usuários de chegar ao trabalho, fábricas deixaram de funcionar, elevadores ficaram parados, etc., etc. Rachel diz que “só o beijo imortal trocado por Helena e o pastor Páris, que desencadeou o lançamento de mil navios e causou a guerra de Tróia, pode lhe ser comparado.”

Que mistérios tem o beijo?  O que é que o faz tão presente em nossa memória? Quem não se lembra da emoção do primeiro beijo, talvez roubado numa varanda ou numa rua solitária? Quem não se lembra da tristeza do último beijo,  quando nos separamos, ainda amantes, ainda amando? Quem não se lembra do ardente desejo do beijo não dado, que fica na carne como um espinho dolorido? Que leitor não se lembra de Romeu e Julieta, de Bento e Capitú, de Riobaldo e Diadorim?

Minha geração cresceu tendo o beijo como símbolo de final feliz, antes do THE END que preenchia as telas dos cinemas. Ainda que recitássemos que “o beijo, amigo, é a véspera do escarro” de Augusto dos Anjos, nos sentimos na pele de Clark Gable quando ele beijou Olívia de Havilland (ou será Vivien Leigh?) em E O VENTO LEVOU, sentimos um nó na garganta quando Ingrid Bergman partiu com Paul Henreid, sem beijar Humphrey Bogart em CASABLANCA.

Talvez o primeiro beijo tenha sido o caricioso sopro dado por Deus para nos criar a alma, a vida, (Gênesis, 2:7). Talvez o mais famoso seja o de Judas, para condenar Jesus. Talvez o mais simples seja aquele que receberemos, um dia, dado pela morte.

Não sei se alguém já escreveu sobre a sociologia ou a história do beijo. Aliás, melhor é não estudá-lo, mas senti-lo.  Um roçar de lábios apaixonados vale mais que mil tratados sociológicos, filosóficos, etc., etc. É por ele que “toda fauna e flora grita de amor”. Um amor tão grande quanto o dos beija-flores, tão grande quanto o daquele casal de bem-te-vis, dos quais Rachel extraiu sua crônica, e tão simples que só os santos e os artistas podem compreendê-lo.


(29 de julho/2006)
CooJornal no 487


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com