17/06/2006
Ano 9 -
Número 481
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
MULHER NO ESCURO |
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Quando alguma mulher me olha nas ruas é para pedir informações ou, pior
ainda, para vender as tais rifas que se alastram pela cidade como pragas
ou cronistas. Por isto, e para evitar as tentações, logo que escurece me
tranco em casa, desligo a campainha, os telefones, fecho as janelas e
mergulho na cama.
Ah, para um velho ranzinza, nada melhor o sono, mas, às vezes, alguma
coisa dá errada, como ontem à noite, por exemplo: ao chegar em casa,
tomei um banho quente, deitei-me e, apesar do cansaço, não consegui
dormir. Peguei um livro policial, li até ficar com os olhos ardendo e
nada. Apaguei as luzes, revirei-me na cama, acendi as luzes, fui até o
computador, tentei escrever e nada. Assisti trechos de um filme, um
programa na TV e... nada. Lá pelas tantas, com fome, fui à cozinha e
ouvi a voz do Falcão cantando “Aiême not dogue não” e atraído pela
música abri uma fresta na persiana. Para meu espanto a vizinha, uma
morena roliça que se mudou para o bairro mês passado e, pelo visto,
também mora sozinha se movimentava no escuro de sua varanda.
Senti um frio na espinha. Substituí o leite por uma taça de vinho e,
como um voyeur, me fixei nos movimentos da mulher, imaginando seu corpo
insinuante, a pele arrepiada pelo o vento, os poros quentes se abrindo,
os mamilos ficando rígidos... Ela estava só e dançava. Breve iria
dormir.
Zorba, o Grego, disse que “quando uma mulher dorme sozinha é uma
vergonha para todos os homens” e, confesso, me senti envergonhado. O que
estão fazendo os homens que não consolam estas mulheres tão bonitas e
solitárias?, pensei. E para colocar o pensamento em prática, fiz o
manjado “ruuum-ruuum” de quem limpa a garganta, para chamar a atenção da
vizinha e, extasiado, percebi que ela se inclinou levemente, como numa
mesura, e levantou o braço num cumprimento (ou me chamando?). A música
aumentava e diminuía, de acordo com o vento. Eu ficava gelado e quente,
de acordo com os movimentos da mulher.
Como tenho medo do ridículo, fechei a persiana, pensei em voltar para a
cama mas, lembrando-me da oração de Santo Agostinho: “Pai, livrai-me da
luxúria, mas não por enquanto...” voltei a abri-la. Não consegui evitar
aquele sinal clássico de rodar o dedo em volta do ouvido, indagando: -
Qual seu telefone? Juro, meus quatro ou cinco leitores, juro que ela
respondeu, também com gestos. Só que, como ando ruim da vista não
entendi. Por isto corri ao quarto, vesti-me às pressas e saí,
sentindo-me voltar à juventude, relembrando dos encontros furtivos nas
ruas escuras da velha Três Corações dos anos sessenta.
Aproximei de sua casa e bati delicadamente na porta, mas ela não
respondeu. O vira-lata do vizinho começou a latir. Ah, raio de cachorro
chato! Esperei um tempo e bati mais forte. Nada. Fiquei inquieto, fui
até à janela e chamei: “- Laurinda. Laurinda!”
O vira-lata tornou a latir e a cachorrada da rua abriu o berreiro. Ouvi
barulho de passos, meu coração disparou, encostei o ouvido à janela,
tornei a chamar, cochichado: “Laurinda. Laláááá!” mas foi o vizinho da
frente quem abriu a sua: “- Tá procurando alguém?”
Pulei assustado. Cretino, fiscalizando a vida dos outros, pensei. Mas
respondi com delicadeza: “- Preciso falar com Dona Laurinda e...”
(Nesses casos é sempre bom colocar um “dona” antes do nome, dá mais
respeito). Ele cortou-me: “- Não tem ninguém, ela viajou!”
Resmunguei um “obrigado” e voltei para casa xingando os desgraçados dos
cachorros, o desgraçado do vizinho. Entrei sem acender as luzes,
tropecei na mesa da cozinha, joguei-me na cama e fiquei me revirando,
pra lá e pra cá, a noite toda. Quando amanheceu corri à biblioteca,
escancarei a janela e vi na varanda da vizinha um lençol branco no
varal, balançando com o vento. De vez em quando fazia um movimento, como
se contorcesse em riso, ao lado duas fronhas se tocavam, como mãos
aplaudindo, ou dando uma banana para um velho palhaço de um
circo-de-meia-lona. Fechei a cortina. Apaguei as luzes.
(17 de junho/2006)
CooJornal
no 481
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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