27/05/2006
Ano 9 - Número 478


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



FRANCISCO, SANTO E POETA

 

Recordo-me de que, ainda jovem, sem ter um centavo nos bolsos, de carona, engraxando sapatos em troca de um pedaço de pão, fui a Assis ver as ruas por onde São Francisco havia sonhado, as estradas por ele percorridas, os bosques por ele visitados. Foi, para mim, um momento importante que me ajudou a compreender meu destino de artista.

Me comovi ao entrar em sua igreja, ver seu corpo sob o altar, senti-lo irmanado desde à grande pintura de Giovanni Gualteri, o Cimabue, e a um minúsculo grão de pó no chão. Mesmo não sendo um católico convicto me ajoelhei e, por um momento, transportado por sua alma de santo e poeta, revi a Cotia de minha infância, a estação onde pegara o trem para o Rio de Janeiro, a velha Lapa, a Rua do Passeio e Sá Ferreira, onde morei neste período de sonhos, e senti paz, a imensa paz de quem estava se comungando com uma alma cósmica, muito maior que a minha mas que tinha a humildade de iluminar-me. E naquele momento vi a luz que todo homem pode ter em sua verdade.

A vida de São Francisco é conhecida. Nascido num castelo onde tinha à disposição dinheiro, mulheres, roupas luxuosas, um dia ouviu as palavras de Cristo, “amai a teu próximo como a ti mesmo”, e despindo-se de tudo, literalmente tirando a própria roupa e jogando-a sobre a neve, “sem dinheiro e sem pais, sem ofício, plano ou esperança, penetrou no mato gelado e pôs-se subitamente a cantar.” Que canto teria sido este? Era o canto dos que são livres, que vai além das palavras, o grande canto cósmico, o grande OM.

Foi com esse canto, sua juventude, sua graça e o poder do exemplo, que conquistou os corações que lhe ajudaram a ver Deus em toda a criação. E a tudo ele chamava de irmão ou irmã.  Louvava o Criador por sua obra em constante movimento e transformação. Via, numa pequena formiga, a dimensão do universo. Via numa imensa montanha, uma mônada do todo. E amava a tudo imediatamente, com alegria e para sempre.

Nas palavras de Chesterton, Francisco “Via apenas a imagem de Deus multiplicada, porém nunca monótona. Para ele, um homem era sempre um homem e não desaparecia numa densa multidão, como não desapareceria num deserto. Honrava a todos os homens, isto é: não somente os amava, mas os respeitava a todos.” “O que lhe dava o seu extraordinário poder pessoal era que, desde o papa até o mendigo, desde o sultão da Síria no seu pavilhão até os salteadores esfarrapados rastejando pelo mato, nunca houve homem que tivesse olhado para dentro daqueles olhos castanhos ardentes sem ter tido a certeza de que Francisco Bernardone estava realmente interessado nele, na sua própria vida íntima individual desde o berço até o túmulo, que ele próprio estava sendo valorizado e levado a sério, ao invés de meramente somado ao espólio de alguma política social ou aos nomes de algum documento clerical.”

 “Senhor, fazei de mim um instrumento de tua paz,
Onde houver ódio, que eu leve amor,
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão,
Onde houver discórdia, que eu leve a união,
Onde houver dúvida, que eu leve fé,
Onde houver desespero, que eu leve a esperança,
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria,
Onde houver trevas, que eu leve a luz.”

São palavras que deveriam estar em todos os corações e em todos os lábios mas que nós, pobres humanos, nos esquecemos de transformá-las em verdade, em nossa verdade.  Hoje, num mundo onde o ódio brota como micróbios numa carne podre, onde velhos vivem abandonados, onde jovens assassinam os próprios pais por trinta dinheiros, onde o estado mais rico do País, São Paulo, vive o caos, onde a corrupção grassa enquanto a fome dizima milhares e milhares de pessoas, seja aqui ou na África, a figura e a vida deste santo/poeta se torna mais luminosa. Francisco é um farol neste século XXI dividido entre luzes e trevas. Que este farol nos ilumine.



(27 de maio/2006)
CooJornal no 478


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com