Braz Chediak
FRANCISCO, SANTO E POETA |
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Recordo-me de que, ainda jovem, sem ter um centavo nos bolsos, de carona,
engraxando sapatos em troca de um pedaço de pão, fui a Assis ver as ruas
por onde São Francisco havia sonhado, as estradas por ele percorridas, os
bosques por ele visitados. Foi, para mim, um momento importante que me
ajudou a compreender meu destino de artista.
Me comovi ao
entrar em sua igreja, ver seu corpo sob o altar, senti-lo irmanado desde à
grande pintura de
Giovanni Gualteri, o
Cimabue,
e a um minúsculo grão de pó no chão. Mesmo não sendo um católico convicto
me ajoelhei e, por um momento, transportado por sua alma de santo e poeta,
revi a Cotia de minha infância, a estação onde pegara o trem para o Rio de
Janeiro, a velha Lapa, a Rua do Passeio e Sá Ferreira, onde morei neste
período de sonhos, e senti paz, a imensa paz de quem estava se comungando
com uma alma cósmica, muito maior que a minha mas que tinha a humildade de
iluminar-me. E naquele momento vi a luz que todo homem pode ter em sua
verdade.
A vida de São Francisco é conhecida.
Nascido num castelo onde tinha à disposição dinheiro, mulheres, roupas
luxuosas, um dia ouviu as palavras de Cristo, “amai a teu próximo como a
ti mesmo”, e despindo-se de tudo, literalmente tirando a própria roupa e
jogando-a sobre a neve, “sem dinheiro e sem pais, sem ofício, plano ou
esperança, penetrou no mato gelado e pôs-se subitamente a cantar.” Que
canto teria sido este? Era o canto dos que são livres, que vai além das
palavras, o grande canto cósmico, o grande OM.
Foi com esse canto, sua juventude,
sua graça e o poder do exemplo, que conquistou os corações que lhe
ajudaram a ver Deus em toda a criação. E a tudo ele chamava de irmão ou
irmã. Louvava o Criador por sua obra em constante movimento e
transformação. Via, numa pequena formiga, a dimensão do universo. Via numa
imensa montanha, uma mônada do todo. E amava a tudo imediatamente, com
alegria e para sempre.
Nas palavras de Chesterton,
Francisco “Via apenas a imagem de Deus multiplicada, porém nunca monótona.
Para ele, um homem era sempre um homem e não desaparecia numa densa
multidão, como não desapareceria num deserto. Honrava a todos os homens,
isto é: não somente os amava, mas os respeitava a todos.” “O que lhe dava
o seu extraordinário poder pessoal era que, desde o papa até o mendigo,
desde o sultão da Síria no seu pavilhão até os salteadores esfarrapados
rastejando pelo mato, nunca houve homem que tivesse olhado para dentro
daqueles olhos castanhos ardentes sem ter tido a certeza de que Francisco
Bernardone estava realmente interessado nele, na sua própria
vida íntima individual desde o berço até o túmulo, que ele próprio estava
sendo valorizado e levado a sério, ao invés de meramente somado ao espólio
de alguma política social ou aos nomes de algum documento clerical.”
“Senhor,
fazei de mim um instrumento de tua paz,
Onde
houver ódio, que eu leve amor,
Onde
houver ofensa, que eu leve o perdão,
Onde
houver discórdia, que eu leve a união,
Onde
houver dúvida, que eu leve fé,
Onde
houver desespero, que eu leve a esperança,
Onde
houver tristeza, que eu leve a alegria,
Onde
houver trevas, que eu leve a luz.”
São
palavras que deveriam estar em todos os corações e em todos os lábios mas
que nós, pobres humanos, nos esquecemos de transformá-las em verdade, em
nossa verdade. Hoje, num
mundo onde o ódio brota como micróbios numa carne podre, onde velhos vivem
abandonados, onde jovens assassinam os próprios pais por trinta dinheiros,
onde o estado mais rico do País, São Paulo, vive o caos, onde a corrupção
grassa enquanto a fome dizima milhares e milhares de pessoas, seja aqui ou
na África, a figura e a vida deste santo/poeta se torna mais luminosa.
Francisco é um farol neste século XXI dividido entre luzes e trevas. Que
este farol nos ilumine.
(27 de maio/2006)
CooJornal
no 478