13/05/2006
Ano 9 -
Número 476
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
A MULHER DE LOT |
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“Então dirá a geração
vindoura, os vossos filhos, que se levantaram depois de vós, e o
estranho que virá de terras remotas, vendo as pragas desta terra, e as
suas doenças, com que Senhor a terá afligido... Nada poderá ser plantado
e nenhuma vida brotará". (Deuteronômio, 29: 22 e 23).
Quando era criança, pensava como criança. Agora que estou velho penso
como velho. E antes que os apressados digam que velho é signo de atraso,
digo que só é velho quem teve a força, a sabedoria e a saúde de não
morrer jovem.
- E daí? – perguntarão alguns.
Daí, respondo, este é um tema atual para reflexão, já que o País tem
passado por uma onda de nostalgia que arrepia qualquer um. Vira e mexe
encontro um desses exemplares que, parados no tempo, afirmam
categóricos:
– Antigamente, é que era bom. Antes era melhor, muito melhor!
Discordo. E analiso o país começando por minha aldeia. Aqui, como em
todas as cidades do interior, não havia saúde, não havia higiene, não
havia cultura. Crianças morriam de sarampo, difteria, tétano, etc. etc.
O esgoto era a céu aberto com fezes escorrendo nas laterais das ruas ou,
quando muito, em fossas nos fundos dos quintais onde havia, também,
chiqueiros e galinheiros. A água não era tratada, a população perdia os
dentes ainda jovem, as ruas não eram asfaltadas, não tínhamos ônibus
entre os bairros, o trem atrasava horas, como levávamos horas para dar
um telefonema interurbano no Posto Telefônico, já que ninguém tinha
telefone em casa.
Quanto à cultura, nem falar: cultivávamos Rui Barbosa como se ele fora
um romancista ou um poeta mas não o líamos (aliás, ainda hoje quase
ninguém lê Rui Barbosa). Não tínhamos biblioteca e achávamos o cinema e
o teatro “arte menores”. As pessoas consideradas “cultas” elogiavam a
Ópera, mas nunca assistiram a uma. Limitavam-se a ouvir as poucas áreas
mais ao gosto popular. Drummond era achincalhado porque era novo e todos
detestavam, ou tinham medo do novo.
A educação seguia o mesmo caminho. Se havia “bons modos” por parte de
alguns, não havia educação no geral. Os brasileiros gostavam de
escarrar. Havia “escarradeiras” nos cinemas, nas salas de espera, nos
escritórios, etc.,etc. Escarrar era chique.
Na política a coisa também era feia. O coronelismo mandava sempre. Não
permitiam o nascimento de novas lideranças. Se um jovem que não
pertencia à clã dos mandatários se sobressaísse era aniquilado ou
corrompido.
Ainda que queiramos tapar o sol com a peneira, a violência era pior que
hoje. Além da violência moral dos preconceitos onde os negros eram
discriminados, os pobres eram discriminados, as mulheres eram
discriminadas, havia a violência de alma. Se uma jovem pobre perdia a
virgindade, por exemplo, era considerada sem vergonha e não tinha outra
alternativa a não ser a prostituição. Se fosse rica era obrigada a um
casamento forçado. Não havia espaço para o amor. Homens casados deixavam
suas mulheres em casa e freqüentavam a zona. Mulheres casadas que
sentissem falta de sexo tinham que se conformar. A traição masculina era
permitida e vangloriada. A traição feminina era punida à bala.
A violência física também era maior, muito maior. Matava-se por “honra”,
por dinheiro, por política. Era comum alguns “coronéis” terem um
“matador” em suas terras para fazer o que achavam que era justiça.
Aliás, este fato está magnificamente mostrado em GRANDE SERTÃO:VEREDAS,
do mestre Guimarães Rosa. Era o Brasil de então. O Brasil que, dizem os
saudosistas, era melhor. Mas a explicação para essa nostalgia é fácil:
antes éramos jovens. Só isso. Nós temos saudades da juventude e fechamos
a memória para o resto. Esta a reflexão que faço, como velho.
É claro que o País ainda tem um longo caminho pela frente. Muita coisa
ainda vai mal, muito mal. É claro que temos que olhar para trás, pois
“quem esquece seu passado está condenado a revivê-lo.”, como nos ensinou
Santayana. Mas vamos olhar de maneira lúcida. Essa arenga de dizer que
antes tudo era melhor é um castigo para os jovens, é desmerecer o mundo
em que eles vivem e querer prendê-los ao passado obsoleto. É um castigo
que não merecem. Os jovens precisam caminhar para frente, sempre para
frente, e não se transformarem, como a mulher de Lot, numa estátua de
sal. Numa imóvel e inútil estátua de sal.
(13 de maio/2006)
CooJornal
no 476
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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