11/02/2006
Número - 463


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



carteiros tricordianos

 

Não sei se foi a música, que na época todos cantarolavam, - “hoje, o carteiro chegou e meu nome gritou com uma carta na mão...” - ou o grito das crianças anunciando sua chegada que ouvi primeiro na minha infância na Rua da Cotia. Mas os dois estão gravados, para sempre, em minha memória.

Três Corações andava devagar, a Cotia andava devagar, como devagar andava seus carteiros e, ainda criança, eu não imaginava quantas histórias de amor, de despedidas, de encontros e desencontros foram transportadas em segredo, em suas sacolas. Não imaginava quanto da geografia da cidade seria traçada debaixo de seus pés que percorriam ruas descalças levando e trazendo notícias de partidas e de regressos, de amantes e seus desejos, de amores contrariados e de amores realizados, de mortes e de nascimentos. Eu não sabia que ali estava jorrando a vida.

Quantos carteiros havia em Três Corações? Não sei. Só sei que, às vezes, um deles se encontrava conosco na rua, na praça ou na ponte e nos entregava uma carta ou telegrama para nossas famílias.

Em nossa casa esse era um dia de alegria. Os libaneses da vizinhança, e até mesmo do centro, que era chamado “a cidade”, logo apareciam curiosos, pois a notícia se espalhava, boca-a-boca, antes mesmo de a carta chegar, e se reuniam em volta da mesa pobre mas onde havia sempre os pães sírios e os quibes que eram passados de mão em mão.

Recordo-me do envelope branco sendo aberto com uma pequena espátula – naquele tempo havia espátulas –, o papel pautado desdobrado com mãos trêmulas e de todos, atentos, ouvindo meu avô, Seu Zé Turco, lendo alto, solene, parágrafo por parágrafo, repetidas vezes, numa língua que só os adultos compreendiam.

Minha avó, da porta da cozinha, perguntava se tinha notícias de seus irmãos e, mergulhada no passado, dizia como eram belos, como se eles estivessem ali, materializados pela carta. Contava causos acontecidos em sua terra distante e cada um descrevia detalhes de sua cidade natal, de um membro da família, numa mistura de português e árabe... Depois meu avô guardava a carta com carinho e, durante dias, a relia sozinho, às vezes sorrindo, às vezes com lágrimas nos olhos, mas sempre me dando a certeza de que era daqueles estranhos signos desenhados no papel que ele extraia a força que os imigrantes têm para continuar. E continuava.

Para mim, criança, o carteiro era um personagem mítico. Quantas janelas se abriam à sua passagem, quantas esperanças despertavam trazendo ou levando a novidade da qual é feita a vida, principalmente em uma cidade que nascia e na qual tudo era novidade!

Meus avós se foram, como se foram seus amigos e seus filhos. Agora, eu também já velho, compreendo aqueles sentimentos de esperança que sentiam neste país que construíram para nós e que hoje é meu país. Compreendo o quanto foram importantes aqueles carteiros. Sei que, ainda hoje, são esses poetas silenciosos, símbolos da generosidade, que de mãos estendidas nos ajudam a escrever e ler, diariamente, nossa história. Por isto escrevo esta crônica com ternura, após ter acompanhado, durante todo o ano a “baixinha” Lucivania, enfrentando o sol escaldante ou chuva torrencial para trazer, também a mim, um pouco de minha própria história. A ela, e seus companheiros de trabalho, minha gratidão.

Acho que foi o carinho que me fez divagar tanto, mas o que eu quero registrar é minha admiração pelos carteiros tricordianos, que foram considerados os melhores do Brasil. Quero dizer que meu coração e minha alma estarão com eles em Brasília, dia 12 e 13, quando receberão as homenagens oficiais, com a presença do Ministro das Comunicações Hélio Costa e do Presidente Luís Inácio da Silva Lula. Quero dizer que são eles, os homenageados, o verdadeiro povo brasileiro, a prova viva de que este é um país generoso e que sua gente é uma brava gente que nos enche de alegria e, principalmente, de orgulho.

Serão dias gloriosos. E que esta glória se espalhe por nossa cidade, nossas ruas, nossas casas e todos os recantos por onde andam os carteiros tricordianos com sua eficiência e seu prazer de ver o dever cumprido. A eles nosso reconhecimento. E obrigado, muito obrigado.

 

(11 de fevereiro/2006)
CooJornal no 463


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br