04/02/2006
Número - 462


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



MANHÃ TRICORDIANA

 

Hoje acordei com uma grande preguiça, dessas que batem na gente no domingo, com vontade de ficar sentado na varanda, à-toa, sem jornais carregados de palavras de ódio, inveja e recalques, televisão desligada, sem ouvir notícias anunciando terremotos, atentados terroristas, corrupção política, crimes, etc., etc.

Nós, que trabalhamos todos os dias de nossas vidas, que pagamos altos impostos, que economizamos até mesmo o pão de cada dia, estamos cansados de brigas entre maridos e mulheres, de traições recíprocas, de violência contra as crianças, etc., etc. Chega de álcool, de drogas, de ódios. Chega de pessimismo. Somos seres humanos e, portanto, merecemos um momento de descanso, um encontro com a paz.  E foi pensando na paz que reli, pela milésima vez, este poema de Manuel Bandeira: 

Belo, belo, belo,
tenho tudo quanto quero.
Tenho o fogo das constelações extintas há milênios
e o risco brevíssimo – que foi? Passou!
- de tantas estrelas cadentes.
A aurora apaga-se
e eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.
O dia vem, e dia adentro
continuo a possuir o segredo grande da noite.
Belo, belo, belo,
tenho tudo quanto quero.
Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.
As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
os anjos não compreendem os homens.
Não quero amar,
não quero ser amado.
Não quero combater,
não quero ser soldado.
- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

 

Quanta beleza, quanto daquela alegria triste, que só os poetas sentem. 

Bandeira foi um homem bom, vivendo sempre nos lugares mais simples do Rio.  Foi no pobre “beco” onde morava, na rua Moraes Vale, perto da Lapa, que compôs sua célebre

SEGUNDA CANÇÃO DO BECO

Teu corpo moreno
É da cor da praia.
Deve ter o cheiro da praia.
Deve ter o cheiro
Que tem ao mormaço
A areia da praia. 

Teu corpo moreno
Deve ter o gosto
De fruta de praia.
Deve ter o travo,
Deve ter a cica
Dos cajus da praia. 

Não sei, não sei, mas
Uma coisa me diz
Que o teu corpo magro
Nunca foi feliz.
 

Tive a felicidade e a honra de ter conhecido Manuel Bandeira. Agora, o sinto ao meu lado, nesta varanda, ouvindo o canto da corruíra, vendo o vôo dos bem-te-vis, o céu azul e o Rio Verde, belo, belo, belo.

Este é um instante mágico em que nós, leitores, podemos, aqui mesmo em nossa pequenina Três Corações, cantar com alegria:

“Belo, belo, belo,
tenho tudo quanto quero.
Tenho o fogo das constelações extintas há milênios
e o risco brevíssimo – que foi? Passou!
- de tantas estrelas cadentes.”

Este é o momento mágico no qual compartilhamos a “delícia de poder sentir as coisas mais simples”. 

 

(04 de fevereiro/2006)
CooJornal no 462


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br