19/11/2005
Número - 451


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



Cego Aderaldo

Encontro, jogado num canto da estante, um velho livro publicado pela Imprensa Universitário do Ceará, com a seguinte dedicatória:

 “Todo o Brasil se levanta,
Contrito de coração,
Para receber, em breve,
Cheio de satisfação,
JK 65
O salvador da nação!
A ele e sua família,
Que eu considero sagrada,
Ofereço este meu livro,
Com a alma esperançada
De vê-lo, em 65,
No Palácio da Alvorada
!
(ass.: Aderaldo)

A dedicatória foi escrita em Fortaleza, no dia 24 de outubro de 1963, mas me recordo da tarde em que o Cego Aderaldo foi ao escritório de JK, na Rua Sá Ferreira, no Rio, e entregou-lhe o livro.

Naquela época, com 21 anos, tinha apenas uma vaga noção de quem era aquele homem que Rachel de Queiroz chamou de “O último dos grandes cantadores.” E é como Rachel escreveu, no prefácio do livro, que me lembro dele: Aderaldo é um velho de mais de oitenta anos, espigado, rijo, fala sonora de homem habituado a dominar auditórios. Tem o riso fácil – é um cego alegre. Seu repertório, porque os cantadores não apenas improvisam, mas também cantam versos de lavra alheia, especialmente os da musa popular, - seu repertório, com poucas exceções, é bem humorado, quase humorístico...”

Naquele dia ele fora agradecer, mais uma vez, uma homenagem que JK lhe havia prestado concedendo-lhe, numa época em que a profissão de artista não era reconhecida, uma pensão de cinco mil cruzeiros mensais.  Digo “mais uma vez” porque ele já o havia feito em versos, logo após a publicação do benefício no Diário Oficial de 12 de abril de 1960:

Agradeço a JK,
Presidente da Nação,
Que antes de ir pra Brasília
Assinou minha pensão,
Afirmo que ele tirou
Um cego da precisão... 

Ele, a 21 de abril,
Cumpriu o seu ideal:
Inaugurando Brasília,
Cidade sem ter rival,
E que será, para sempre,
A Capital Federal. 

Só tu, bonita Brasília,
Vieste para empolgar
Este bonito planalto,
O sonho de JK,
Foi Juscelino quem fez
Todo o Brasil acordar! 

O Brasil, há muitos anos,
Vivia em pesado sono,
Mas, agora despertou,
Tendo JK por dono,
O poder desta Nação
Continua em novo trono. 

Já estamos antevendo
Do Brasil o bom destino;
Novos governos virão
Cheios de fé e bom tino:
Outro talvez continue
A Obra de Juscelino... 

Envio  à sua Família
(Que para mim é sagrada)
As mil felicitações
De minha’alma consolada,
Para que Deus ilumine
O Palácio da Alvorada!...”

Aderaldo era um homem simples que, como era e é comum entre os cantadores,  às vezes trocava o sentido das palavras  -  como o contrito da dedicatória, por exemplo – mas transmitia o que queria dizer com luminosidade. 

JK era um presidente de coração imenso, que amava a arte e compreendia os artistas, suas alegrias, angústias e necessidades.  Ele não voltou em 65. Com o golpe militar, amargou o exílio e seus direitos foram cassados.

Outros Presidentes passaram por Brasília. Mas todos viveram à sombra - ou assombrados? - de JK. Outros cegos empunharam a viola e cantaram as misérias e grandezas de nosso país. Mas nenhum deles como Aderaldo, o cego que criava luz.

 

(19 de novembro/2005)
CooJornal no 451


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br