12/11/2005
Número - 450


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



A GATINHA E OS CRONISTAS

Há dois meses apareceu em minha casa uma gatinha de pelos dourados e olhos azuis que se aninhou atrás de um vaso de bromélia. Achei-a bonita mas, com medo que devorasse os sanhaços, os bem-te-vis e as corruíras que, como membros do MST, invadiram minha varanda, toquei-a para a rua. Pouco depois estava de volta, deitada no mesmo lugar. Toquei-a novamente mas lá pela quarta ou quinta vez desisti e deixei-a ficar.

No início nossas relações foram boas, eu dando-lhe flocos de ração na boca, alisando-lhe os pelos, fazendo-lhe carinhos. Ela se enroscando em minhas pernas, miando baixinho em meus ouvidos, passando o narizinho em meus braços. Mas como toda gatinha (animal) que se preza, pouco a pouco foi ocupando espaço. Mexia em meus livros, tomava meu lugar na frente da televisão e uma noite a encontrei em minha cama, aninhada sobre o travesseiro. Que abuso!, resmunguei e a mandei sair, imediatamente. Olhou-me ofendida e, com desdém, erguendo a cabeça deixou o quarto e foi para a rua.

Passou a me evitar: se eu entrasse na cozinha, por exemplo, ia para a sala. Se me sentasse na varanda, ia dar um passeio pela vizinhança. Nos dias de chuva, como uma adolescente sonhadora passava horas na biblioteca. Nos dias de sol se espreguiçava, lânguida, no peitoril da janela olhando para o nada.

Achei melhor assim, cada um na sua. Aliás, estou muito velho e ranzinza para ficar preso a uma gatinha (animal) intrometida e temperamental.

Mas os dias foram passando, a situação ficando insuportável, e resolvi procurá-la para discutir a relação.

Encontrei-a em frente ao computador. Aproximei-me devagarinho disposto a pedir desculpas, dizer que nunca mais agiria daquele modo mas, para meu espanto, vi que ela olhava sonhadoramente para uma crônica da Maria Lúcia Dahl, cujo título era.... EU E MEU GATO, e parecia ler. Pior, parecia estar apaixonada.

Levei um susto, pensei que estava maluco. Peguei o catálogo, procurei o telefone de um amigo psicanalista mas me lembrei de uma história contada por Garcia Marques há uns 30 anos atrás: no interior da Colômbia, uma velha tinha um gato que falava. Dizia-lhe “bom dia”, “boa tarde”, “como vai a senhora?”, “Que horas são?”... e a notícia se espalhou. De repente a cidadezinha foi tomada por parapsicólogos, religiosos, estudiosos de OVNIS, etc., etc., até que uma junta médica foi designada para estudar o fenômeno. Examinaram a velha, o gato, estudaram manuais, conferenciaram e decretaram: “- O bichano não fala, ele tem um defeito no palato!” Desisti. É melhor não mexer com médicos, principalmente psicanalistas! De mais a mais, foi apenas uma coincidência, sou distraído, esqueci o computador ligado e a gatinha fora atraída pela luminosidade...

Mas nossas relações nunca mais foram as mesmas. Ela nunca mais foi a mesma. Eu mesmo não mais fui o mesmo (que frase!): escondi todos os autores que falavam de gatos, como T.S.Eliot, Ferreira Gullar, Vinícius, Maria Lúcia Dahl e, por via das dúvidas, até mesmo o velho Poe. Tomado por um sentimento de vingança troquei a ração MAX Cat, sua preferida, por restos de comida. Nos dias de sol, molhava a varanda para que ela não se deitasse, nos dias de chuva trancava as portas e as janelas para que não entrasse.

Pouco a pouco foi se afastando, fazendo passeios cada vez mais longos, até que um dia sumiu. Então me deu uma saudade danada, senti falta de seu ronronar, de seus carinhos e saí por Três Corações procurando-a pelas esquinas, praças e botequins. Nunca mais a encontrei.

Ontem, pensei ver uma gatinha amarela na janela de um casarão no centro. Corri até lá, mas a janela estava vazia. Olhei pelas frestas e tive a impressão de ver um enorme gato preto lambendo a própria cauda como se se enfeitasse para uma festa. Ou para uma noite de amor. Mas deve ser só impressão. Estou velho, ando confundindo as coisas.



(12 de novembro/2005)
CooJornal no 450


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br