05/11/2005
Número - 449
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
UMA ESTAÇÃO CHAMADA TRÊS CORAÇÕES |
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Na
frente do caco de espelho penteou os cabelos brancos e ajeitou o chapéu
na cabeça. Desde que a mulher fugira, há 30 anos, o chapéu era seu único
orgulho. Um presente que o turco Badia lhe dava, todos os anos, no
Natal.
O que fazia dos outros, dos chapéus anteriores, ninguém sabia. Como
ninguém sabia como, tendo uma única roupa, andava sempre limpo.
Era assim há 30 anos. Todos os dias, à mesma hora, após arrumar o chapéu
demoradamente, descia a Rua Direita, devagar, uma perna manca, os olhos
brilhando de alegria, o rosto negro iluminado, o sorriso solto nos
lábios, cumprimentando a todos, informando:
- Vou à estação. Minha mulher chega hoje!
As mulheres, que se debruçavam nas janelas, os homens que conversavam
nas esquinas, o cumprimentavam:
- Bom dia, Bené. Traga sua mulher para nos visitar!
Abria mais o sorriso:
- Ela chega hoje.
Na estação, os ferroviários informavam:
- O trem está com 10 minutos de atraso, mas não demora. Sua mulher vem
no vagão de primeira classe.
No barzinho, comia um pastel com café, que a dona não lhe cobrava:
- Outro dia você paga. Deixa o dinheiro pra fazer o jantar pra mulher!
Terminado o café, caminhava de um lado a outro da plataforma, inquieto,
ansioso, até que ouvia o apito do trem que chegava. Aí, parava estático,
apenas o rosto se transformando num facho de luz, de esperança.
Quando o comboio parava, como uma criança procurava pelas janelas dos
vagões. Esperava e, quando todos os passageiros haviam descido, sua
expressão se tornava séria. Mas ficava ainda esperando (quem sabe?) até
que o trem partisse. E só então, cabeça baixa, ia embora ouvindo os
ferroviários que afirmavam:
- Deve ter havido algum problema, Bené. Mas amanhã ela vem.
- É. Amanhã ela vem!, exclamava num sussurro enquanto voltava para casa
por outro caminho, evitando as pessoas, para que ninguém assistisse sua
dor, sua decepção que se repetia.
Bené morava sozinho, desde que a mulher partira. Um quartinho pobre,
apenas um caixote de querosene que lhe servia de mesa e a cama com os
lençóis sempre estendidos.
Naquela manhã, na frente do caco de espelho, sentiu a pontada no peito.
A dor subiu pelo braço, espalhou-se pelo corpo que parecia queimar.
Ouviu um apito – o apito de um trem – que lhe penetrou na cabeça, no
peito, na alma. Num esforço, ainda teve tempo de um sorriso, antes que o
corpo tombasse e o chapéu rolasse pelo chão. Mas de repente parecia
flutuar. Saiu de casa e, feliz, percebeu que toda a cidade ouvia o apito
que se espalhava pelas praças, pelas esquinas, entrava pelas casas. Não
mancava mais, seus passos eram leves.
Viu o comércio fechar suas portas, as casas fecharem as janelas. Passou
entre os homens, mulheres e crianças que, seguindo aquele som, desciam
pela Rua Direita, atravessavam a ponte do Rio Verde. Todos na mesma
direção. Todos em direção à Estação. Todos indo esperar a mulher que
chegava.
(05 de novembro/2005)
CooJornal
no 449
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br
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