22/10/2005
Número - 447


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



NÃO DESAPARECERAM NO NADA

Tenho o hábito de ir para a casa de meus pais escrever minha crônica semanal, principalmente quando ela está ligada à memória afetiva. Encontro ali o ambiente melhor para recordações. Em geral sento-me no quarto que fora de meu pai e, posteriormente, meu. Raramente vou à cozinha ou à varanda detrás, de onde se vê as velhas árvores cobertas de musgos, o quintal sujo de mato, o muro manchado pelas águas das chuvas, as paredes descoradas pelo tempo. Talvez por isto não tenha acompanhado as transformações feitas pelos anos, e me afastado de “meu” tempo.

Este abandono me entristece, mas ao ver alguns passarinhos que me são estranhos, alguns insetos que nunca havia visto antes, reflito: o quintal não está sujo, mas sim transformado em um novo nicho ecológico onde a vida termina e recomeça, sempre. É como nos lembra Sêneca: “Os elementos terrestres se dissolverão e tudo será destruído para que tudo seja criado novamente em sua primeira inocência...”.

É esta inocência que vejo na vida primitiva que está ali naqueles pássaros e insetos, naquele capim que abre suas sementes para alimentá-los. É esta inocência que sinto no sonho que um dia meus pais sonharam ao construir a casa, lugar sagrado onde, eles sabiam, envelheceriam e morreriam.

É a percepção desta inocência que, juntando-se à memória, se transforma na fonte de luz que, neste instante, ilumina meu passado e me ajuda a ver que a velha casa ainda “...abriga o devaneio, protege o sonhador, nos permite sonhar em paz... É justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como devaneios que as moradias do passado são em nós imperecíveis.”

Já disse, em crônica anterior, que estes momentos quase sempre me lembram Norberto Bobio dizendo que o tempo do velho é o passado. “E o passado revive na memória. O grande patrimônio do velho está no mundo maravilhoso da memória, fonte inesgotável de reflexões sobre nós mesmos, sobre o universo em que vivemos, sobre as pessoas e os acontecimentos que, ao longo do caminho, atraíram nossa atenção. Maravilhoso este mundo, pela quantidade e variedade inimaginável e incalculável de coisas que traz dentro de si...”

Maravilhoso este mundo que ficou “no tempo da memória”, que se torna claro e, neste momento, ao sentar-me no banco de madeira onde outrora meus pais sentaram, me ajuda a pensar em quantos sentimentos eles sentiram aqui nesta mesma varanda, quantas vezes observaram este mesmo vaso, esta mesma trepadeira que, agora sem flores e sem folhas, me parece triste. São sentimentos diferentes os sentidos por eles e os que sinto, mas são eles que nos unem enquanto penso em todas estas coisas.

Vindo da sala escuto suas vozes, seus sons: os LPs que meu pai ouvia todos os dias de sua vida, enquanto almoçava sozinho na cabeceira da velha mesa. Vejo a chama da vela acesa no quarto onde ele fazia suas orações. “A chama é um mundo para o homem só.”, diz Bachelard, “As fantasias da pequena luz nos levam de volta ao reduto da familiaridade... Com a fantasia da pequena luz o sonhador se sente em casa, seu inconsciente é como se fosse sua casa.”

Escuto também os sons de minha mãe, o chiar da frigideira no fogo, sua voz pedindo para comprarmos pães velhos para as rabanadas de Natal e vejo a outra chama, a chama azul acesa no fogão que agora é uma peça inútil na cozinha vazia.

Meus pais estão mortos. Desvio os pensamentos, não interessa a ninguém, a não ser a mim, estas recordações. Mas outra vez Bobbio me cochicha: “Quando percorremos uma vez mais os lugares da memória, os mortos perfilam-se em torno de nós em número cada vez maior. A maior parte dos que nos acompanharam já nos abandonou. Mas não podemos apagá-los como se nunca tivessem existido. No momento em que os trazemos à mente, os fazemos reviver e ao menos por um instante não estão de todo mortos, não desapareceram no nada...”



(22 de outubro/2005)
CooJornal no 447


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br