15/10/2005
Número - 446
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
CHURRASQUINHO, ADEUS |
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“Uma
geração vai, e outra geração vem, mas a terra para sempre fica. O sol
nasce, e o sol se põe, e volta ao lugar onde nasceu.” E a cada nascer do
sol há um sorriso de esperança. E a cada por do sol há a tristeza de um
adeus.
Às vezes é um adeus triste a um amigo querido. Às vezes um adeus
doloroso à mulher amada. Às vezes um adeus simples, desses que a gente
nem fala, mas sente que ficou um vazio no lugar de quem se foi.
Este o vazio que senti quando soube da morte do Churrasquinho, o pedinte
de nosso bairro.
Todos nós o conhecíamos e, comigo, ele sempre foi gentil. Nunca soube
seu nome, e penso que ele mesmo o havia esquecido há muito tempo. Como
esquecera o que era a esperança, o amor, a solidariedade. Havia deixado
de sonhar.
E um homem privado dos sonhos tem uma carga muito pesada para carregar.
Ele, como nós, era frágil. Às vezes esboçava uma reação, aparecia com
uma camisa limpa, dizia-nos que pararia de beber, que iria cuidar de si
e pedia aquela que, dizia, seria sua última esmola. Mas, pouco a pouco,
ia se despindo de tudo novamente, até que renunciou às roupas, à casa,
às companhias. Eu o vi, várias vezes, caminhando descalço pelas ruas.
Não era o caminhar do prazer, dos que querem sentir o contato com o
chão, mas o caminhar de quem sente a dor do solo que queima, dos
pedregulhos que ferem as solas dos pés. Era o caminhar dos que não têm
sapatos. Dos que não têm nada.
E era o nada que o Churrasquinho sentia à sua volta. Ele tornava-se cada
vez menos e, depois de separar-se dos outros, de seus semelhantes,
separava-se de si próprio. Inconscientemente procurava o fim, o descanso
de tudo.
Na peça A MORTE DO REI, de Eugene Ionesco, o monarca “... para
morrer, precisou antes destruir suas relações com o mundo e separar-se
de si mesmo... através da renúncia.” Este rei é o homem, é cada ser
humano, mesmo o mais humilde, aquele que nos pede uma moedinha para o
pão ou para a pinga, para sobreviver até o anoitecer ou até a manhã
seguinte.
Na sociedade capitalista, selvagem, globalizada, o homem perdeu a
dignidade. Ele mede os valores do Ser pelo valor monetário. Nós somos
classificados pelo que produzimos. É comum ouvirmos a sentença dura,
cruel:
- Fulano é vagabundo. Não trabalha.
Os acusadores não querem saber se o fulano é poeta ou santo, para eles o
ócio, mesmo o ócio criativo, é odioso, pois eles já perderam a
capacidade de contemplar, a capacidade de se comunicar com a terra ou
com Deus. Como venderam, e vendem, suas vidas ao trabalho escravo,
odeiam os que têm liberdade. Mesmo que seja a liberdade mais elementar,
a liberdade de ser pobre em um mundo em que a riqueza material é
considerada virtude.
Tem um ditado japonês que diz que “quando os homens oram pedindo riqueza
aos deuses estes apenas riem.” E esses deuses que riem de nós nunca
riram do Churrasquinho. São esses deuses que o estão recebendo, agora,
num paraíso onde há generosidade e compreensão. Num paraíso onde não há
julgamento, pois os deuses sabem que, para o grande OM, os humildes são
bem aventurados, são eles que o Terão na glória de eternidade.
Quanto menor a matéria, mais depressa ela corre em direção ao todo. E
Churrasquinho não tinha nada, não carregava peso material, por isso ele
chegará depressa aos páramos longínquos.
Confesso envergonhado que às vezes o evitava, esquecia que ele era um
semelhante meu, que fazia parte das nossas ruas, das nossas praças, da
nossa cidade, das nossas vidas. Mas agora sentirei sua falta. Sua morte
me revelou que ando esquecido das palavras: Amarás a teu próximo como
a ti mesmo. E esta revelação me faz pedir a Deus que tenha
misericórdia dele que se foi. E tenha misericórdia de nós que aqui
ficamos.
(15 de outubro/2005)
CooJornal
no 446
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br
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