24/09/2005
Número - 443
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
ONDE O TEMPO SE INSCREVE |
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A primeira imagem que tenho de você são suas lâmpadas cintilando à
distância, como pequenos vaga-lumes. Não era o olhar de ver, mas o olhar
de claridade acolhendo o menino que, ao lado do pai, desembarcava na
estação fascinado pela luz elétrica, pelos sons dos rádios, pelas
mulheres enfeitadas que observavam das janelas.
Ser criado numa estação ferroviária é como ser criado num cais de porto,
sempre alguém chegando ou partindo, sempre adeus. Mas naquele momento,
eu soube que você seria minha companheira e que nunca, por toda vida, eu
lhe daria o adeus definitivo.
Você me veria crescer, me veria partir, me veria voltar. Seria
testemunha de todos os sentimentos e lembranças que me acompanharam pela
vida afora. E como são grandes, e às vezes doloridos, estes sentimentos!
Como são profundas estas lembranças!
A Cotia foi minha primeira rua. Foi lá que eu nasci, foi lá que meu pai
me levou pela primeira vez a um sapateiro, que colocou meus pés num
papelão e riscou o desenho, enquanto ele recomendava:
- Faz de sola batida!
A sola batida durava mais. E qualquer economia era bem vinda em nossa
família ferroviária, onde o dinheiro era raro, tão raro que, por faltar
cobertor nas noites de inverno, minha mãe deitava-se no lugar de cada
filho para aquecer a cama e, quando estivesse quentinha, nos chamava um
a um para deitar. Graças a ela estávamos aquecidos, em nossos corpos e
em nossas almas, me recordo com ternura.
Foi na Cotia, também, que meu pai um dia me comunicou:
- Hoje nós vamos ao cinema!
Foi o primeiro filme que vi, AS MIL E UMA NOITES, e fiquei
fascinado. Neste mesmo dia ele me levou à banca de Jornais do velho
italiano, Seu Condino, e comprou para mim a primeira revista.
Hoje, escrevendo a você, vejo o quanto aquele dia foi definitivo, pois
além de mostrar-me que havia outros mundos, outros povos, outras
histórias, nunca mais parei de ir ao cinema, até tornar-me diretor. E
nunca mais parei de ler, por toda a vida.
A Rua 6 foi minha segunda rua. Ainda vejo com clareza a manhã da
primeira aula no Colégio Estadual, a praça lotada de estudantes, a
vibração, a troca de olhares entre os rapazes e as meninas que começavam
um novo ciclo na vida.
O Rock, através de Bill Halley e Elvis Presley, e a Bossa Nova, através
de João Gilberto, estavam chegando à nossa cidade e, como todos os
jovens do mundo, mudávamos nosso comportamento. Imitamos os topetes com
brilhantina, o vestir com desleixo, o sentar nos meio-fios, o contestar
e protestar. James Dean era nosso ídolo. Vê-lo beber o leite no bico da
garrafa, em JUVENTUDE TRANSVIADA, causou um tumulto de alegria em
todos nós. Tínhamos um parceiro em nossa rebeldia adolescente.
A música nos levava a maravilhosas viagens imaginárias. Glenn Miller e
Nelson Gonçalves, Paul Anka e Carlos Gonzaga, Lana Bittencourt, Neil
Sedaka, Nat King Cole e Celly Campello se misturavam nas longas horas de
sonhos solitários.
Assistíamos às chanchadas da Atlântida com o mesmo prazer com que
assistíamos aos faroestes de Hollywood. Sonhávamos com as mocinhas com o
mesmo ardor com que lutávamos contra inimigos desconhecidos. Queríamos
sumir e queríamos ficar. E a Rua 6 era o porto seguro que nos permitia
esses sonhos.
Depois houve a partida. Houve a descoberta do mundo. Houve o retorno.
Houve o convívio com os poetas que lhe dedicavam poemas apaixonados: o
Renato com sua voz ardente, declamando alto:
“Sinto a vida em festa!
Abrir o coração
e ter a alma repleta:
o que me inunda é a
poesia.”
E ele mesmo nos inundava de poesia, desta poesia que estava espalhada
por suas ruas, pelas águas de seu Rio Verde, pelo canto de seus
pássaros.
O Valério, este menino que conhece cada palmo de seu chão, cada cheiro
de suas árvores, cada carícia de seus sons:
“(Há sempre crianças
brincando
nas ruas de minha
infância)”
O Beto Iemini que, depois de percorrer babéis letais e lentas, nos
revela:
“Nada que se compare
ao seu olho
quando o sol
gentilmente cria
sombras...”
O Josefino e suas elegias das estradas, o Tufi e suas crônicas
machadianas, o Siqueira, o Benefredo, o Darcy... os seresteiros Vitor
Cunha e o violão que é sua alma, a Luciana Santana, meu filho Yassír,
sua voz, sua viola...
Todos nós lhe pertencemos e por isto estou lhe escrevendo, nossa Três
Corações: para lhe dar meu abraço no dia de seu aniversário. Para
dizer-lhe que se a primeira imagem que tenho de você são as lâmpadas
cintilando à distância, como pequenos vaga-lumes, são suas luzes que
vivem em mim. Em nós. E, no dizer de Bérgson, em A EVOLUÇÃO CRIADORA,
“Em todo lugar onde alguma coisa vive, existe, aberto em alguma parte,
um registro onde o tempo se inscreve.”
(24 de setembro/2005)
CooJornal
no 443
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br
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