20/08/2005
Número - 438


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



TESTEMUNHOS E RECORDAÇÕES

Caminhando por Santa Teresa *, sentindo o frio do mês de agosto, aproveito o silêncio do dia que amanhece para observar nossas ruas, nossas árvores, nosso Rio Verde, que nesta época está mesmo verde e passa tranqüilo, se exibindo alegremente. Recordo Bachelard, em O Direito de Sonhar: “O mundo quer ser visto: antes que houvesse olhos para ver, o olho da água, o grande olho das águas tranqüilas olhava as flores que se abriam. E é nesse reflexo - quem dirá o contrário? - que o mundo tomou, pela primeira vez, consciência de sua beleza...” Que momento magnífico esse em que o mundo, o nosso mundo, toma consciência de sua beleza!

Continuo a caminhada. Na avenida, uma jovem, mirando-se no vidro de um carro estacionado, arruma delicadamente seus cabelos. Seus joelhos estão dobrados sobre o capô e sua perna repousa, brilhante, perfeita, em harmonia com a curva da manhã que surge no céu. Ela faz parte do dia que nasce. Ela é o dia que nasce.

Diz a lenda que “nos jardins do Oriente, para que as flores fossem mais belas, para que florescessem mais depressa, mais calmamente, com clara confiança em sua beleza, tinha-se bastante cuidado e amor para se colocar, diante de uma haste vigorosa que levasse a promessa de uma jovem flor, duas lâmpadas e um espelho. A flor podia então se mirar durante a noite. Tinha, assim, infindavelmente, o gozo de seu próprio esplendor.” É esse o gozo que aquela jovem sente, pensei, e à distância, não querendo que ela me veja, para não interromper seu gesto, fico feliz por testemunhar esse instante glorioso.

Na rua onde morei sinto uma pontada de tristeza: recordo-me de meu pai e minha mãe, sentados na varanda, me desejando um bom dia. Recordo-me de um vizinho, que já se foi, passeando com seu cão e dizendo, alegre como uma criança: - Braz, este é fila legítimo!

Mas afugento a tristeza. Sinto que eles, meu pai, minha mãe e o vizinho estão ali, presentes nas calçadas, nas árvores, no canto dos bem-te-vis que acordam, no vôo de uma corruíra que começa sua algazarra procurando insetos pelo chão, e querem ser lembrados com alegria, como vida, pois estão ligados para sempre à vida. São eternos e a “a eternidade não é outra coisa senão a libertação do tempo, a volta à inocência, o regresso ao espaço”.

Entro na padaria e peço meu desjejum. A funcionária me atende com um sorriso claro. Percebo que ela, que é naturalmente alegre e tem sempre uma palavra carinhosa para os fregueses, está mais radiante, exibindo orgulhosa um início de gravidez. Serve-me o café com leite e o calor do copo aquece minhas mãos. Sinto o cheiro e o sabor do pão e me recordo de quando ela, ainda criança, começou a trabalhar. Posso dizer que a vi crescer, que também testemunhei sua formação de mulher. E agora testemunho a vida que ela traz dentro de seu ventre.

E são estes testemunhos, estas recordações, que me ajudam a começar o dia e a escrever esta crônica. Uma crônica em homenagem à jovem e a seu filho que ainda não nasceu. Em homenagem a meus pais e ao vizinho que, com sua eternidade, fazem parte de minha memória. Ah, como são sábias as palavras de Norberto Bobbio, quando nos aconselha: “Concentremo-nos. Não desperdicemos o pouco tempo que nos resta. Percorramos de novo nosso caminho. As recordações virão em nosso auxílio.”

* Santa Teresa: bairro tricordiano onde moro.



(20 de agosto/2005)
CooJornal no 438


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br