23/07/2005
Número - 434


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



UMA RUA CHAMADA COTIA

Passando pela Rua da Cotia, onde nasci e passei parte de minha infância, observando suas casas singelas, estranho a diferença de sons, de vozes, de vidas, que existe entre este bairro e o centro da cidade: aqui as pessoas conversam nas esquinas, crianças brincam descalças pelas ruas e, como se tivessem voltado no tempo, mulheres regam flores nas janelas e se debruçam para conversar com as vizinhas ou, simplesmente, pelo prazer de debruçar.

Na Cotia, ainda é possível ouvir os galos da madrugada. Não esses galos de granja, desafinados, sem nenhum profissionalismo. Mas os galos caipiras, pontuais, que cantam em tons diferentes e formam uma verdadeira sinfonia no amanhecer.

Por instantes, volto à minha infância, à rua sem asfalto, quando meu avô, Seu Zé Turco, em sua cadeira de balanço, olhando para fora, me gritava, com seu sotaque carregado, ao ouvir o barulho de algum automóvel:

- Brazinho, vem fechar janela!

Era assim. Naquela época havia 2 ou 3 carros em Três Corações e dava tempo de fecharmos as janelas antes que a poeira entrasse. Aliás, em nossa terra havia tempo de ser criança e tempo de crescer, tempo de plantar e tempo de colher, havia tempo de namorar, tempo de noivar e tempo de casar. E tudo era um acontecimento, as notícias corriam livres, boca à boca. Não havia telefones particulares e, quando alguém recebia um telegrama - em geral, comunicando nascimento ou morte - toda a cidade tomava conhecimento, pois havia tempo para aqueles que ficavam na porta da telefônica ou do correio para saber as novidades e contá-las pelos bares, barbearias, sinucas, praças e esquinas.

Para mim a Cotia tinha uma fronteira espiritual que passava pela subida do Herculano. Dali avistávamos toda a Cidade e, com ela, a alegria de tomarmos uma vitamina no seu Elias, um sorvete no Jorge Casquete, uma pipoca no Zico e - maravilha das maravilhas - os cinemas. Sim. Naquela época havia cinemas em Três Corações e era neles que nos reuníamos para sonhar.

Mas o tempo passa. Até mesmo algumas palavras passam. Ninguém mais diz “semblante”, não se faz mais “ajantarados”, os costumes mudaram, as janelas foram substituídas pela televisão, que também ocupou o lugar na sala onde antes haviam as imagens dos presépios e as novenas.

Continuando meu passeio, passo pela estação e vejo meu pai com seu uniforme cáqui - depois azul marinho - dando licença para os trens enquanto minha mãe vende cafezinho e pastéis no bar. Me recordo de meus irmãos que cresciam, de minhas irmãs, tão bonitas, se arrumando para passear na praça, de meu pai lhes recomendando que voltassem antes das l0.

Quantas coisas estão registradas na minha memória. Ainda ouço o farfalhar dos vestidos roçando as anáguas das moças de minha infância, sou capaz de distinguir suas vozes, a cor de seus batons, a tonalidade de suas peles. Ainda escuto a gritaria dos homens fazendo apostas nas brigas de galos. Ainda ouço o canto triste, doloroso, da Verônica nas semanas santas e o passo das beatas, vestidas de preto, cabisbaixas, com seus terços pendurados nas mãos entrelaçadas.

Hoje tudo é memória, apenas memória. A cidade cresceu, as velhas gerações se foram e novas gerações surgiram. Este é o processo natural. Mas a Cotia ficou, eterna, gravada em meu coração com um gosto de jabuticaba madura, com o cantar dos galos da madrugada, com o perfume dos canteiros molhados, com os pedaços da vida.



(23 de julho/2005)
CooJornal no 434


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br