16/07/2005
Número - 429
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
LANCHANDO COM OS ÍNDIOS |
|
Esta semana, sentindo que os alunos do Projeto Pedalarte* estavam agitados
por causa de um temporal que se aproximava, resolvi mudar o rumo das aulas
e contar a eles um pouco da minha vida, da vida de um artista brasileiro
quando jovem.
Comecei passando um filme de Cangaço, da década de 60, que conta a
história de Virgulino Ferreira, o Lampião, sua entrada para a
marginalidade, o encontro com Maria Bonita, o nascimento da filha, etc.,
etc., até sua morte numa emboscada quando teve a cabeça cortada e exibida
como troféu.
Disse aos pequenos alunos que eu tinha estado no lugar onde se deu o fato,
percorrido aquelas terras para estudar, que vira a cabeça de Virgulino, da
Maria Bonita e de todo o bando num museu, e senti que eles se
entusiasmaram. Pouco a pouco esqueceram a chuva e me encheram de perguntas
sobre cinema, viagens, etc. etc.
Eu lia em seus olhos o fascínio, a vontade de novas descobertas, e a
história que mais agradou foi a de minha ida ao Xingu, para assistir a um
Quarup e à posse do Chefe Aritana - hoje famoso por seus movimentos em
favor dos índios e que, vira e mexe, está na grande mídia.
Aritana é filho de Kanato, que se tornou personagem de Antônio Callado, de
José Mauro Vasconcelos e de outros que escreveram sobre nossos índios.
Mas vamos à história:
Os chefes de todas as aldeias indígenas da região estavam reunidos na
aldeia dos Camaiurás para a celebração do Quarup. Desde o amanhecer os
guerreiros se preparavam, pintando seus corpos com urucum e carvão, o que
dava a eles aquele belo colorido vermelho-negro. Nos cabelos, passavam uma
pasta estranha da qual, infelizmente, não anotei o nome ou de que era
feita. Colares e cocares de grande beleza enfeitavam os chefes. E no
centro das homenagens, um deles, com uma fita de couro de onça ao redor da
cabeça, permanecia quieto, altaneiro, orgulhoso. Era o Grande Chefe.
Eu estava em companhia de Orlando Vilas-Bôas, filmando a festa. Como
diretor, orientava aos câmeras, aos eletricistas, etc. Tinha que filmar
muito, pois sabia que tudo aconteceria de repente e que não poderia
ensaiar nem repetir a mesma tomada. Mas fui interrompido quando o Grande
Chefe, o Chefe dos Chefes, me mandou um sanduíche de biju com peixe moído.
Agradeci ao portador e, apesar da fome, ia deixar o sanduíche de lado, mas
Orlando me falou:
- Come, é uma homenagem a você por ser o chefe da equipe.
Guardei a câmera, tirei do bolso um pouco de sal (os índios não comem sal
nem açúcar, por isto tinha levado o sal do Rio), coloquei no sanduíche e
comi. Comi lentamente, saboreando, degustando, enquanto Orlando me olhava
em silêncio.
Terminada a refeição, cumprimentei o Grande Chefe que me presenteara com a
iguaria e voltei ao trabalho, feliz pela homenagem, feliz por ter comido.
Quando anoiteceu e estava voltando para nosso acampamento Orlando Vilas
Boas deu uma grande gargalhada e me disse:
- Braz, esta foi a maior homenagem que você já recebeu em sua vida.
- Que bom! – respondi - Fico contente!
E Orlando continuou com aquele seu jeito de gigante e de menino:
- Eu não te contei na hora, senão você não ia comer. E isso seria uma
grande ofensa. O Chefe mastigou o peixe, pra te poupar esse trabalho,
misturou-o com saliva para facilitar a digestão, cuspiu no biju e te
ofertou. Este gesto é uma demonstração de respeito e de estima.
Meu estômago embrulhou. Tive vontade de xingar nosso grande sertanista. -
Ora, isso é coisa que se faça com um pobre diretor mineiro e bobo? - Mas
sua companhia, e o gesto do Grande Chefe, me orgulhavam tanto que me
limitei a um sorriso amarelo e a uma jura, em silêncio, que nunca mais
comeria nenhum presente de índio.
* Projeto Pedalarte: criado pelo autor, este projeto ministras aulas de
teatro e música para 30 crianças carentes de Três Corações, além de
oferecer alimentação, acompanhamento médico e dentário, transporte, aulas
de inglês, português, etc. O Projeto conta, atualmente, com a parceria da
Prefeitura Municipal e da Total Alimentos.
(16 de julho/2005)
CooJornal
no 429
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br
|
|