02/07/2005
Número - 427


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



MAL SECRETO

Assim como todos nós temos uma música que marca determinados momentos de nossas vidas, acredito que cada rua, também tem uma história, um cheiro, um colorido ou, muitas vezes, um poema que nos remetem a momentos que nos marcaram para sempre. E explico esta minha crença: ontem, passando pela Rua da Cotia ao anoitecer, observando os casais que voltavam para casa trazendo sacolas de compras para o jantar, passei por uma casinha bem arrumada, dessas que nos fazem perceber que ali mora uma família caprichosa, e me lembrei de um casal que morava no bairro, quando eu era criança, e que todo mundo invejava porque era um casal feliz.

Era uma felicidade escancarada: andavam de braços dados - naquele tempo os casais andavam de braços dados -, trocavam carícias públicas, beijos enamorados. Ele era o único marido, em toda Três Corações, que oferecia flores à própria esposa. E ela, todas as manhãs, quando ele ia para o trabalho, o acompanhava e ficava lhe dando adeus, como uma enamorada adolescente, até que ele dobrasse a esquina.

- Ridículos! – exclamavam as mulheres debruçadas nas janelas.

- Pouca vergonha! – sussurravam os homens nas esquinas.

Mas um dia o marido foi surpreendido por uma carta anônima: “Sua mulher está te traindo assim, assim. Enquanto você está trabalhando, ela se encontra com o amante numa chácara na saída da cidade.” Ele leu tudo em silêncio e, em silêncio, rasgou a carta em pedacinhos e os atirou ao fogo. Nada disse à mulher.

Passados 5 dias nova carta, com detalhes mais íntimos, descrevendo sussurros que ele próprio conhecia, palavras ditas na hora do amor que ele mesmo havia escutado milhares de vezes. Desta vez ele a guardou no cofre, mas nada contou à mulher.

E as cartas foram pontuais durante mais de 1 ano, sempre com a mesma letra, sempre com o mesmo tom. E durante mais de 1 ano ele as guardou em segredo e continuou sua rotina de marido enamorado. Mas numa tarde de domingo, quando apanhava tomates para o almoço, sentiu uma dor no peito e morreu.

No dia seguinte, não se sabe como, toda a cidade, tomada de espanto, ficou sabendo das cartas anônimas. E mais, ficou sabendo que quem as escrevia era a própria mulher. Sim, era ela quem descrevia as cenas ardentes com um amante imaginário, era ela que se comprazia em fazer o marido sentir-se traído.

- Mas por quê? - perguntarão meus três ou quatro leitores -, por quê?

A resposta foi para o túmulo com ela. Mas ainda me lembro que aquela descoberta foi um choque para todos e que por muito tempo eu ouvia homens e mulheres cochichando pelas esquinas, tecendo hipóteses para o fato.

E ontem, passando pela Cotia, e me lembrando daquele casal, me recordei do poema MAL SECRETO, que recitávamos, com o coração cheio de mágoas, em nossas adolescências:
Se a cólera que espuma, a dor que mora / N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,  / Tudo o que punge, tudo o que devora  / O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora  / Ver através da máscara da face, / Quanta gente, talvez, que inveja agora  / Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo / Guarda um atroz, recôndito inimigo, / Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,  / Cuja ventura única consiste  / Em parecer aos outros venturosa!

Claro, outros poemas estão ligados à Cotia daquele tempo. Mas foi este soneto, de Raimundo Corrêa, que me veio à memória junto com o cheiro de café sendo torrado, de alho refogado para o tempero do feijão, junto com as vozes das crianças que corriam pelas ruas de minha infância. Foi este soneto que, para mim, ficou ligado àquele casal que é, hoje, uma pequena história da qual ninguém se lembra mais.



(02 de julho/2005)
CooJornal no 427


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br