21/05/2005
Número - 421
ARQUIVO BRAZ CHEDIAK
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Braz Chediak
UMA CORRUÍRA NA
VARANDA |
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Ontem à tarde estava ouvindo
Casta Diva, da ópera Norma, de Bellini,
interpretada por Maria Callas, quando uma pequena corruíra, nascida ano
passado nos fundos de minha casa e que agora mora na varanda, assentou-se
num galho da trepadeira e, estufando o peitinho de penas marrons, soltou
seu canto, ainda desafinado pela pouca idade.
A princípio não dei importância, era apenas mais um pássaro que cantava
numa tarde de início de outono. Mas a jovem corruíra, agora com um aspecto
zangado, fez um ruído estranho, como se se preparasse para uma guerra, e
cantou mais alto.
Sei que os pássaros têm rituais, principalmente na época do acasalamento,
e que estes rituais têm significados, mas confesso que não sou estudioso
do assunto e, por isto, me concentrei na música, procurando me descansar
do dia puxado, me desligar dos problemas naturais da vida que se acentuam
com a velhice.
Mas o passarinho não me deixou concentrar. Pulou de um lado para outro, me
olhou como se estivesse com raiva e, num esforço supremo, cantou numa
altura em que eu nunca havia ouvido uma corruíra cantar. De repente notei
que havia certa semelhança entre seu canto e a melodia da ária que La
Callas interpretava e compreendi que a avezinha estava chateada porque
outra voz invadia seu território, seus domínios.
Esta compreensão me fez rir, afinal sua raiva era tão delicada que chegava
a ser engraçada. Mas ela, talvez achando que meu riso fosse de desdém,
ficou mais irritada e, caminhando sobre o peitoril, cambeteando com suas
perninhas tortas, parou bem em frente ao aparelho de som e, arrepiando as
penas, cantou novamente, tão alto e tão dobrado que parecia que ia
explodir.
Confesso que fiquei comovido com aquele ser pequenino que, com orgulho e
paixão, tentava imitar a grande cantora, num verdadeiro duelo musical. Um
duelo que, tenho certeza, nunca, em nenhum lugar do mundo, fora visto ou
ouvido por alguém, e do qual eu era testemunha. E por isto, por perceber a
angústia daquele delicado passarinho, por perceber que era seu coração que
gritava, desliguei o aparelho de som.
De início a avezinha me olhou desconfiada, como se eu fosse um deus com
poderes de fazer cessar uma música tão bonita. Depois tornou a cantar seu
próprio canto e, como se só então descobrisse sua voz, estufou o peitinho
e caminhou orgulhosa para seu ninho num buraco perto do telhado.
Fiquei ali, sozinho, em silêncio, pensando em todos os seres que querem se
expressar e não encontram sua própria voz. E imediatamente me veio à
cabeça um trecho de Henry Miller em que ele fala de sua luta no início de
carreira, quando passava fome pelas ruas de Paris: “Imitei todos os
estilos na esperança de descobrir a chave do segredo torturante da arte de
escrever. Finalmente cheguei a um beco sem saída, a um desespero que
poucos homens conheceram, porque não havia divórcio entre o Eu escritor e
o Eu homem. E eu fracassei. Percebi que não era nada – menos que nada. Foi
então que realmente comecei a escrever. Lançando tudo ao mar, mesmo
aqueles que amava. No momento em que ouvi minha própria voz fiquei
encantado: o fato de ser uma voz isolada, distinta, única, me deu alento.
Não me importava se o que escrevia pudesse ser considerado ruim. Bom e
ruim saíram do meu vocabulário.... Encontrava uma voz, estava de novo
inteiro...”
Foi, de certo modo, o que acontecera com a corruíra. Ela também tentara
imitar a voz de Maria Callas, ela também, por um instante, se sentiu
fracassada diante daquela voz maravilhosa e que não era a dela. Mas quando
desliguei o som ela pode ouvir sua própria voz e tornou-se novamente a
corruíra de minha varanda. Tornou-se inteira.
Agora, tenho certeza, ela está em seu ninho, junto à sua companheira, e
ambas se entendem.
Dizem os pesquisadores que os pássaros, mesmo antes do nascimento, quando
ainda estão em formação dentro do ovo, já aprendem a reconhecer os piados,
os chamados das mães. E isto é uma coisa bela. É, mais ou menos, como nós,
seres humanos, que reconhecemos o Chamado Cósmico, o Verbo. Que percebemos
que o Verbo se fez carne e está entre os homens, entre as aves, os
animais, as plantas, as águas e nos transforma num único, imenso e
maravilhoso Ser chamado Vida.
(21 de maio/2005)
CooJornal
no 421
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br
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