22/04/2005
Número - 417
- Ana Cristina Cesar
- Crônica e ponto final
- É tão sublime o amor
- Juramento de Hipócrates
- Leila Diniz
- O canoeiro
- O gol é uma lágrima de saudade
- O rabo do saci
- Os melhores contos de medo, amor e morte
- Uma velha agenda
- Vida de cachorro
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Braz Chediak
OS BEM-TE-VIS |
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Tenho o hábito de, todas as tardes, colocar em minha varanda um desses
bebedouros de beija-flor, com água e açúcar e, um pouco distante, uma
bandeja com duas bananas, um pedaço de mamão e meia laranja para os
sanhaços. Gosto de ver estas avezinhas se alimentando antes do anoitecer.
Mas ontem surgiram dois bem-te-vis, belíssimos, mas grandes demais para a
pouca alimentação que coloco, e em poucos minutos devoraram as bananas.
Com medo de que eles acabassem também com o mamão e a laranja espantei-os
batendo palmas.
Eles voaram para o muro do vizinho e ficaram me olhando, a princípio
assustados, mas depois desdenhosos de minha mesquinhez. Eu também os
encarei, achando-os atrevidos, mas vendo que os dois se tratavam com muita
ternura, me arrependi.
Logo em seguida um deles piou e voaram para longe. E então me lembrei de
uma mulher que amei em minha juventude e com a qual sentia grande prazer
em ir a um cinema, a uma praia e, principalmente, a um restaurante perto
de nossa rua onde comíamos uma refeição simples, quase sempre a mais
barata, mas cujo sabor, realçado pelo carinho, ainda conservo na memória.
Esta lembrança me entristeceu, e me lançou a dúvida: será que aqueles
bem-te-vis não estariam curtindo um início de romance, orgulhosos por se
encontrarem numa varanda simples, mas que para eles pode parecer
riquíssima já que tem uma bandeja com frutas tão gostosas? Talvez. E eu os
espantei, interrompi aquele momento delicado com um simples bater de
palmas. Mas já que estava feito procurei me esquecer do fato.
À noite, sentado diante do computador para escrever minha crônica semanal,
pensei ter ouvido novamente o pio dos bem-te-vis. Fui até à janela e...
Não. Não havia nada, era apenas minha imaginação. Mas, voltando ao
computador, a crônica recusou-se a sair. Como isto já me acontecera antes,
deixei-a de lado, abri a Internet para as pesquisas habituais e, por
coincidência, numa propaganda de um produto de beleza lá estava um casal
de bem-te-vis igual ao de minha varanda. O fato me incomodou. Seria mesmo
coincidência?
Fui ligando as coisas. Relembrei um artigo que li, há tempos, e que dizia:
“No Japão, na tradição xintoísta, que é uma tradição xamânica, o
primeiro ato de religar o céu e a terra, o ser e o universo, é bater duas
vezes as palmas das próprias mãos. Bater duas vezes as palmas das mãos é
emanar o som do seu ser, é dizer aos espíritos, aos Kami, quem somos, é
dizer "eu sou", é exprimir o princípio da minha identidade no mundo
cósmico – hoje diríamos no mundo quântico, no mundo da não-separabilidade.”
Eu havia feito o movimento inverso. Eu bati as palmas de minhas mãos para
separar duas criaturas e, portanto, quebrei a harmonia, descontrolei a
beleza e, pior, disse aos espíritos uma mentira pois, afinal, não sou um
Ser desagregador ou destruidor.
Durante muito tempo em minha vida fiz indagações a respeito de Deus e dos
Homens. Durante muito tempo em minha vida caminhei sem rumo, desesperado,
sem saber que não é necessário um rumo, que basta um pequeno olhar para
acabar com o desespero. Eu estava num mundo maravilhoso e não o via.
Estava mais preocupado em analisar, classificar, exigir do que deixar a
vida fluir em mim como estava fluindo em todas as coisas.
Como um personagem de comédia, em todas as manhãs de sol eu dizia: “Ah,
que sol desgraçado!”. E nas manhãs de chuva: “Ah, que chuva desgraçada!” e
se não houvesse nem uma coisa nem outra, resmungava: “Ah, que tempo
desgraçado que não se define!”
Mas pouco a pouco, à medida que envelhecia, fui compreendendo o sol e a
chuva e dando graças por eles. Fui aprendendo a pensar mais nas pequenas
coisas como, num encontro num pobre restaurante, do que nas grandes
teorias filosóficas ou políticas. Fui aprendendo que existem vários
caminhos para a vida e para as crônicas e que todos eles nos levam em
direção ao grande OM, em direção ao infinito, em direção aos Paramos
Eternos onde os bem-te-vis voam e se amam em paz.
(22 de abril/2005)
CooJornal
no 417
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br
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