02/04/2005
Número - 414
- Crônica e ponto final
- É tão sublime o amor
- Juramento de Hipócrates
- Leila Diniz
- O gol é uma lágrima de saudade
- O rabo do saci
- Uma velha agenda
- Vida de cachorro
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Braz Chediak
ANA CRISTINA CESAR |
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Terça-feira passada, ao dar uma arrumação em minha biblioteca reencontro
alguns livros de Ana Cristina Cesar. Abrindo um deles, ao acaso, encontro
um texto que fala de mim.
Não, não éramos íntimos. Eu a conheci pouco, mas um de nossos encontros
foi registrado por ela e está em INÉDITOS E DISPERSOS, livro organizado
por Armando Freitas Filho.
Estávamos voltando de São Paulo num ônibus tardio, sentamo-nos lado a
lado, e confessamos, mutuamente, nosso medo de avião. Falamos de poesia e
de cinema, ela abrindo a janela cada vez que eu - na época, fumante
exagerado - acendia um cigarro, e pouco depois cochilamos. A parte do
texto que fala de mim, sem nome, sem rosto, e que me foi presenteado pelo
escritor Flávio Moreira da Costa, que me identificou pelas calças de
veludo verde escuro, é assim:
“Quando vi, estava meio caidinha na poltrona 35, torcendo o nariz para o
Bom-Ar, batendo os olhos nas pernas verdes de veludo, recusando cigarro,
disputando silenciosamente o espaço no braço da cadeira: um cotovelo aqui,
outro ali, e fato inédito, adormeci direto com gosto de almíscar na boca,
dor de cabeça reclamando fundo do Bom-Ar, jogo de molejo, jogo da
memória...” e ela conta um encontro que teve com uma celebridade num
teatro paulista e termina dizendo: “Mas agora vem um vento frio sobre a
minha pele quente, e mais quente ainda neste braço da poltrona onde se
encontra outro braço, outra pele batida pelo vento, sem rosto, encontro
cutâneo sem rosto”.
Naquela noite eu não percebi o toque de nossos braços, mas ainda me lembro
do rosto, do belo rosto de Ana Cristina Cesar. Ainda ouço sua voz, seu
riso, seu respirar e sinto uma grande ternura por ela.
Mário Prata disse que “as pessoas não ficavam amigas de Ana. As pessoas
simplesmente se apaixonavam por ela”. E Armando Freitas Filho: “Ana
Cristina encarava a modernidade. Talvez por isso tenha morrido cedo - pura
passagem permanente - muitas asas e um desdém pelo que poderia ser raiz. O
lugar que ocupa é linha do horizonte - virtual e veloz.
Seu verso, que pertence à vertente cultivada da geração que apareceu em
70, é, hoje, pedra de toque para toda poesia que se quer nova; com seus
motivos e matizes estilizados que se deixam acompanhar, ao fundo, por uma
brusca e inusitada melodia que parece ter sido feita pela mistura de
cristais, heavy metal e tafetá.
A obra é breve, um cinema essencial, e depressa. Morria de sede no meio de
tanta seda. Nunca nos esquecemos de sua paixão acesa e seca. O que mais
queima: a pedra de gelo ou o ferro em brasa? Vulcão de neve. Ela não foi -
ela fica - como uma fera.”
Paro a arrumação. Devolvo todos os livros à estante e fico apenas
segurando o pequeno volume de Ana Cristina Cesar. Viro algumas folhas e
acontece outra coincidência. O poema:
Tenho arrumado os livros.
Tiro de uma prateleira sem ordem e coloco em outra
com ordem. Ficam espaços vazios.
Hora em hora.
Não tenho te dito nada.
Ligo para os outros.
O que eu poderia dizer é perigoso: certeza (assim como
eu disse: daqui dez anos estarei de volta) de que nos
reencontramos, cedo ou tarde.
Mas não sei mais quando
Cedo ou tarde reencontro - o ponto
de partida.
Não. Ana Cristina Cesar não está de volta. Ela sempre esteve, e estará,
entre nós que amamos a poesia. E com ela também nós reencontramos nosso
ponto de partida.
(02 de abril/2005)
CooJornal
no 414
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br
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