Braz Chediak
O RABO DO SACI |
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Noite passada acordei sobressaltado,
depois de sonhar com uma mulher que fez parte de minha adolescência e que
nunca mais vi. Não sei se ela ainda mora em Três Corações, não sei se
casou e mudou, nem mesmo sei se está viva. Mas sei que senti saudades
dela.
Resolvi sair e, como a noite estava fria, vesti um velho paletó e, ao
colocar as mãos no bolso, descobri um pequeno pedaço de barbante. Por que
ele estava ali, não sei. Mas imediatamente me lembrei de que antigamente,
quando perdíamos alguma coisa, dávamos um nó bem apertado num barbante
parecido com aquele, e dizíamos:
- Saci, me faça encontrar tal objeto que eu solto teu rabo!
Era tiro e queda. Em alguns minutos encontrávamos o que havíamos perdido
e, como paga do favor, desatávamos o rabo do Saci. Era uma brincadeira de
criança, mas seguindo um impulso dei um nó no barbante que segurava e,
pedindo ao pequeno duende que me ajudasse encontrar aquela mulher perdida
há tanto tempo, joguei-o sobre a mesa e saí.
As ruas estavam vazias e não havia bares abertos. Sentei-me sozinho, na
praça, tentando reconstituir a imagem do sonho mas a paisagem solitária e
os ruídos, que se tornavam mais fortes na noite, me levaram a fazer um
mapa de recordações: Ali ficava a carrocinha do Zico, cercada pelo cheiro
bom das pipocas quentinhas. Em frente, os cinemas onde nós, jovens
estudantes, nos encontrávamos para ver os faroestes. Do outro lado, o
Clube, o Bar Balalaica... As moças giravam nesta direção, os rapazes
naquela. Pensei em quantas vezes aquela mulher havia feito este mesmo
giro, em quantas vezes eu a vira passar, sem coragem de dizer-lhe que a
admirava.
Subindo a Rio Branco, a vi saindo do Colégio Estadual, e ouvi as vozes de
meus professores: Dona Oneida nos contando histórias, Terezinha cantando
dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, Zé dos Santos nos ensinando a “Última
flor do Lácio, inculta e bela...”, Rizio Santana nos perguntando se “Is it
a book?”... Ouvi a campainha nos avisando que as aulas terminaram. E vi a
mulher saindo, segurando delicadamente os livros sob os braços cruzados na
frente do corpo, cercada de amigas, de amigos. Ouvi alguns dizendo “até
logo!”. Outros dizendo “adeus!”. E entre os que deram adeus, para sempre,
vi o João Palma Lima com seu sorriso claro, vi a Ana Ximenes atravessando
a rua segurando as mãos da Ângela, vi o Renato acenando com folhas de
papel cheias de poemas... e me afastei.
Em frente à Matriz, pelo alto-falante, Cascatinha e Inhana cantavam “Índia
teus cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar...”.
Num tablado, um leiloeiro gritava, fazendeiros arrematavam novilhas,
crianças brincavam, mulheres de sapatos e vestidos novos conversavam
alegremente. E, de uma barraca onde fui beber um quentão, vi a mulher
passar deixando atrás de si um rastro de perfume.
Segui-a por algum tempo. Ela desceu a Rua Direita, atravessou a ponte,
passou pela estação onde meu pai, em seu uniforme azul marinho de
ferroviário, a cumprimentou; sorriu para minha mãe, e foi em direção à
Subida do Herculano. Eu quis chamá-la, quis ver como é agora seu rosto,
como é sua voz, como estava sua vida. Mas alguma coisa me impedia.
Caminhamos por muito, muito tempo por toda a cidade, minha vida passando
como num filme, até que, cansado, voltei para casa e deitei-me novamente.
Já era dia claro quando acordei e vi meu paletó pendurado na cadeira, em
frente ao computador. Lembrei-me da mulher. Lembrei-me das coisas que vi.
Lembrei-me das pessoas que encontrei. Levantei-me, peguei cuidadosamente o
barbante e, surpreso, pensei ter visto um negrinho com um cachimbo na boca
e olhar moleque fugir por debaixo da porta. É o cansaço, pensei. Mas, por
via das dúvidas, desatei o nó.
(26 de março/2005)
CooJornal
no 413