26/03/2005
Número - 413




 

Braz Chediak



O RABO DO SACI

Noite passada acordei sobressaltado, depois de sonhar com uma mulher que fez parte de minha adolescência e que nunca mais vi. Não sei se ela ainda mora em Três Corações, não sei se casou e mudou, nem mesmo sei se está viva. Mas sei que senti saudades dela.

Resolvi sair e, como a noite estava fria, vesti um velho paletó e, ao colocar as mãos no bolso, descobri um pequeno pedaço de barbante. Por que ele estava ali, não sei. Mas imediatamente me lembrei de que antigamente, quando perdíamos alguma coisa, dávamos um nó bem apertado num barbante parecido com aquele, e dizíamos:

- Saci, me faça encontrar tal objeto que eu solto teu rabo!

Era tiro e queda. Em alguns minutos encontrávamos o que havíamos perdido e, como paga do favor, desatávamos o rabo do Saci. Era uma brincadeira de criança, mas seguindo um impulso dei um nó no barbante que segurava e, pedindo ao pequeno duende que me ajudasse encontrar aquela mulher perdida há tanto tempo, joguei-o sobre a mesa e saí.

As ruas estavam vazias e não havia bares abertos. Sentei-me sozinho, na praça, tentando reconstituir a imagem do sonho mas a paisagem solitária e os ruídos, que se tornavam mais fortes na noite, me levaram a fazer um mapa de recordações: Ali ficava a carrocinha do Zico, cercada pelo cheiro bom das pipocas quentinhas. Em frente, os cinemas onde nós, jovens estudantes, nos encontrávamos para ver os faroestes. Do outro lado, o Clube, o Bar Balalaica... As moças giravam nesta direção, os rapazes naquela. Pensei em quantas vezes aquela mulher havia feito este mesmo giro, em quantas vezes eu a vira passar, sem coragem de dizer-lhe que a admirava.

Subindo a Rio Branco, a vi saindo do Colégio Estadual, e ouvi as vozes de meus professores: Dona Oneida nos contando histórias, Terezinha cantando dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, Zé dos Santos nos ensinando a “Última flor do Lácio, inculta e bela...”, Rizio Santana nos perguntando se “Is it a book?”... Ouvi a campainha nos avisando que as aulas terminaram. E vi a mulher saindo, segurando delicadamente os livros sob os braços cruzados na frente do corpo, cercada de amigas, de amigos. Ouvi alguns dizendo “até logo!”. Outros dizendo “adeus!”. E entre os que deram adeus, para sempre, vi o João Palma Lima com seu sorriso claro, vi a Ana Ximenes atravessando a rua segurando as mãos da Ângela, vi o Renato acenando com folhas de papel cheias de poemas... e me afastei.

Em frente à Matriz, pelo alto-falante, Cascatinha e Inhana cantavam “Índia teus cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar...”. Num tablado, um leiloeiro gritava, fazendeiros arrematavam novilhas, crianças brincavam, mulheres de sapatos e vestidos novos conversavam alegremente. E, de uma barraca onde fui beber um quentão, vi a mulher passar deixando atrás de si um rastro de perfume.

Segui-a por algum tempo. Ela desceu a Rua Direita, atravessou a ponte, passou pela estação onde meu pai, em seu uniforme azul marinho de ferroviário, a cumprimentou; sorriu para minha mãe, e foi em direção à Subida do Herculano. Eu quis chamá-la, quis ver como é agora seu rosto, como é sua voz, como estava sua vida. Mas alguma coisa me impedia. Caminhamos por muito, muito tempo por toda a cidade, minha vida passando como num filme, até que, cansado, voltei para casa e deitei-me novamente.

Já era dia claro quando acordei e vi meu paletó pendurado na cadeira, em frente ao computador. Lembrei-me da mulher. Lembrei-me das coisas que vi. Lembrei-me das pessoas que encontrei. Levantei-me, peguei cuidadosamente o barbante e, surpreso, pensei ter visto um negrinho com um cachimbo na boca e olhar moleque fugir por debaixo da porta. É o cansaço, pensei. Mas, por via das dúvidas, desatei o nó.



(26 de março/2005)
CooJornal no 413


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br