19/03/2005
Número - 412




 

Braz Chediak



O GOL É UMA LÁGRIMA DE SAUDADE

O velho, antes de dormir, trancava-se no quarto para fazer suas orações. O garoto aproveitava e ligava a televisão. O velho interrompia suas preces e ralhava com o neto:

- Desliga isto. Amanhã você tem aula cedo!

O menino insistia:

- Pó, só vou ver o primeiro tempo!

O velho mantinha-se irredutível e o menino ia para o quarto, resmungando: “velho chato”.

Na hora do almoço o velho descascava seis laranjas e as chupava como sobremesa. Um dia o menino pegou uma delas. O velho murmurou baixinho: “que criança chata”. Mas daquele dia em diante aumentou a cota: descascava sete laranjas. Uma era para o neto.

O velho era botafoguense doente. O menino, fanático pelo Flamengo. Quando os dois times se enfrentavam a briga era certa: se o Botafogo vencia, o velho, com seu sorriso alegre, chamava o Flamengo de perna-de-pau. O menino, com raiva, reagia:

- Pô, vô, não enche o saco!

E trancava-se no quarto, batendo a porta.

Se o Flamengo ganhasse, o menino chamava o Botafogo de “timinho” e o velho xingava:

- Esse moleque não me respeita!

De uma viagem ao Rio, o menino trouxe uma bandeira do Flamengo e a pendurou na parede de seu quarto. Nos dias de jogo amarrava-a em um bambu e, correndo em sua bicicletinha, gritava:

- “Mengoooo!!!! Mengoooo!!!!”

E, passando diante da janela do avô, suspendia a bandeira bem alto para que ele a visse. O velho fechava a janela, resmungando.

Um dia o velho ganhou uma pequena bandeira, uma flâmula, do Botafogo e chegou em casa orgulhoso. Na hora do almoço colocou-a perto das laranjas. O menino se recusou a comer e só mais tarde foi lanchar na varanda. O velho, então, guardou a bandeirinha na gaveta de sua mesa, no quarto, e só a tirava nos jogos do Botafogo.

O menino mudou-se para o Rio, mas quando o Flamengo jogava com o Botafogo ligava para o avô e gritava pelo telefone: “Mengo! Mengoooo!!!”. O velho gritava que o juiz roubara e desligava o telefone.

Quando o Botafogo vencia, era o velho quem ligava:

-Time é time. Time é o Botafogo... -, e o menino desligava, depois de dizer que o juiz não marcara um pênalti ou que roubara descaradamente.

Uma noite o menino estava dormindo quando o telefone tocou. Era o tio, dizendo que o velho estava à morte. Quando o pai lhe contou, o menino começou a gritar:

- Meu avô! Meu avô!

E quis ir com o pai, de ônibus, apesar de seu cansaço de criança.

Quando chegaram o caixão estava na sala, as pessoas em volta, no silêncio constrangedor da morte.

O menino segurou um soluço e correu para o quarto, tirou da gaveta a pequena flâmula botafoguense, voltou para a sala e, apertando a bandeirinha no peito, debruçou-se sobre o caixão do avô, murmurando aos prantos:

- Vovô, o Botafogo é o maior time do mundo!



(19 de março/2005)
CooJornal no 412


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br