01/06/2022
Ano 25
Número 1.274






ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK 



 

Braz Chediak


UMA VELHA AGENDA

Limpando meus livros descubro, escondida num canto da estante, uma velha agenda dos tempos em que comprei meu sítio. Abro-a ao acaso e leio algumas anotações: Arrumar a cerca, capinar o pomar, adubar os pés de laranja lima... e imediatamente me veio à memória aquela época.

Lembrei-me do dia em que comprei diversas mudas de laranja lima, num caminhão estacionado em Santa Teresa e do vendedor que me sorria com tanta simpatia.

Com uma alegria danada, plantei-as, as vi crescer, florescer e dar os primeiros frutos, sonhando em chupar aquelas laranjas docinhas, docinhas. E um dia, voltando de uma viagem ao Rio e vendo que diversas estavam maduras, apanhei uma, a mais amarelinha, e, com a boca cheia d’água, descasquei-a com cuidado. Mas.... era uma laranja azeda, ácida, que nada tinha de laranja lima. Há princípio fiquei na dúvida: será que havia comprado alguma muda de outra qualidade? E experimentei outra de outro pé, e de outro, e de outro... e todas eram azedas, piores que limão.

Imediatamente pensei naquele vendedor malandro, que havia me passado a perna. O danado não me sorrira coisa nenhuma, ele rira de mim, isto sim. Senti uma raiva desgraçada, mas me veio a pergunta: será que este golpe, este pequeno golpe, fez dele uma pessoa melhor? Certamente não. Certamente ele continua como sempre foi, um pobre homem que precisa mentir para sobreviver. Ou talvez, quem sabe, tenha se enriquecido e hoje, entre uma cerveja e outra, conte aos amigos que um dia, em Três Corações, deu um “grande golpe num barbudo meio ranzinza chamado Braz...”.

Não vou pedir a Deus que o mande para o inferno, quando ele morrer. Mas que o mande para o purgatório por um bom tempo e que tenha de chupar todos os dias, enquanto estiver lá, umas 2 ou 3 dúzias de laranjas daqueles pés que me vendeu. Acho que é uma pena justa.

Em outra página, com a caneta já falhando, leio esta anotação: Procurar arapucas.

Não, eu não gosto de caçar passarinhos, gosto deles livres, como devem ser livres também os homens, e explico a causa da anotação: trabalhava comigo um casal que tinha dois filhos que viviam fazendo gaiolas de bambu que enchiam com canarinhos, tico-ticos, coleirinhas, etc., etc. Fui até a casa deles e disse, muito sem jeito, que eu não queria nenhum passarinho preso e, muito menos, que fossem mortos.

O homem coçou a barbicha, ouviu, ouviu, concordou.... mas as crianças continuaram caçando.

Um dia eu os observei, de longe, e descobri onde armavam sua arapuca. Fui até lá e a destruí. Não adiantou, fizeram outra. Destruí-a novamente. Fizeram outra. Foi aí que comecei a pensar e me lembrei que o pessoal da roça é muito supersticioso, têm muito medo.

Aproveitando uma ida à cidade, comprei numa casa de macumba um pequeno diabo vermelho, olhos arregalados, cara feia, rabo com fisga na ponta.

De volta, coloquei o diabinho debaixo da armadilha, desarmei-a e fiquei escondido, esperando.

Pouco depois os meninos chegaram. Viram a arapuca desarmada, correram alegres, meteram a mão e...... quando viram o diabo saíram gritando apavorados. Gritaram tanto que o pai e a mãe correram para ver o que era. E também saíram correndo, aos gritos:

- Credo em cruz, ave Maria!!!!!!!!!!!!!!!

No mesmo dia o homem arrumou suas coisas e se mudou. Meu sítio tomou fama de ser mal assombrado, lugar onde o diabo aparecia, e que eu tinha parte com o demônio. Foi um custo para arrumar outra família para trabalhar lá.

Hoje, o sítio e as arapucas são anotações escritas numa agenda abandonada. Mas, como o retrato na parede do Drummond.... “Como dói!”



(RT, 12 de março/2005)
CooJornal nº 411.




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Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG



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