06/08/2023
Ano 26 Número 1.330
ARQUIVO BRAZ CHEDIAK
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Braz Chediak
O JURAMENTO DE HIPÓCRATES
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Cada
dia procurava um médico e todos a atendiam com a mesma cortesia. No
consultório do cardiologista, por exemplo, apresentava sintomas cardíacos:
- Não aguento mais essa queimação no peito, essa pontada...
E o
médico, com paciência de Jó, a examinava e sabendo de sua neurose, de sua
necessidade de doença, dizia:
- O caso é sério!
E ela, com
um sorriso nos lábios, com uma alegria súbita, indagava:
- É grave,
doutor?
- Gravíssimo!, respondia o doutor, indo até à pia onde
enchia um copo d’água, com um pouco de açúcar, e entregava à mulher:
- Beba isto. E cuidado. O caso não é para brincadeira!
Ela saía
embevecida, elogiando:
- Nunca vi um doutor como este. Nunca vi.
Dia seguinte procurava outro. Chegava ao consultório do
gastroenterologista, gemendo:
- Estou com dor aqui, aqui e aqui...
O médico a mandava deitar-se, apalpava-a e dizia:
- O problema
é seriíssimo! Seriíssimo!
E novamente ela abria o sorriso, tomava o
remédio que o médico lhe dava e saía feliz.
- Isso é que é médico!
Isso é que é médico!
E todos a conheciam e atendiam, de graça com a
mesma paciência.
Os médicos dos Postos de Saúde a recebiam
diariamente. E até o pediatra, quando a encontrava, mesmo na rua, tirava
do bolso uma colher e uma lanterninha e ia dizendo:
- Põe a língua
pra fora. Fala AAAAAAAHHHHHHH!!!!!!!
Entrava nas farmácias e
drogarias como um santo entra num templo ou um jogador no Maracanã.
Aquelas prateleiras, aqueles remédios todos eram o paraíso. Mal via os
balconistas, perguntava ansiosa:
- Alguma novidade?
E eles,
tomando-lhe o pulso:
- Chega amanhã um produto novo. Mas, meu Deus,
como a senhora está pálida....
E ela saía dali felicíssima:
- Bom menino este farmacêutico. Tão atencioso...
. . .
Um
dia, surgiu na cidade um médico novo. Jovem bem falante, trazendo em sua
bagagem a sabedoria dos recém-formados, começou logo a montar seu
consultório na Rua Direita.
Em contado com os colegas já
estabelecidos, tomou conhecimento dos assuntos (e das moléstias) de Três
Corações e foi informado por todos da existência e da mania de Dona
Milica. Escutou tudo e, entre dentes, murmurou:
- Essa não!
Pronto o consultório, colocou anúncio nos jornais e na rádio: estaria
atendendo os clientes “amanhã, a partir das 9 horas...”.
Dona
Milica, não contendo a ansiedade, veio a pé do Fim Cotia e foi a primeira
a chegar. E com o coração saltitante foi atendida pelo jovem médico.
A bem da verdade, ele a examinou com o cuidado do iniciante. Dos pés à
cabeça. Só pulou “as partes” porque ela, ali, não deixava homem nenhum pôr
as mãos.
Quarenta minutos cravados de exame. Depois mandou que ela
se assentasse e fez algumas anotações. Dona Milica não agüentava mais
esperar o veredicto, esperançosa de alguma doença moderna, um nome
estranho, etc. Seria acertar na loteria.
Mas o jovem médico
levantou a cabeça e disparou:
- A senhora não tem nada. Tem saúde
pra dar e vender!
Foi como uma punhalada. Ela ainda arriscou um
“mas...”, mas o jovem médico a interrompeu:
- Uma saúde de ferro!
E ela, então, sentiu o sangue subir. Sentiu que o corpo esquentava.
Sentiu a tristeza, o abandono, a decepção. Num esforço, tentou levantar-se
mas viu que tudo fugia. E seus olhos pararam.
Enquanto o jovem
médico, lavando as mãos, resmungava entre dentes:
- Comigo não. Eu
fiz o juramento de Hipócrates!
Sem perceber que Dona Milica estava
morta.
(26 de fevereiro/2005) CooJornal no 409
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
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