01/07/2024
Ano 27 - Nº 1.373






ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK 



 

Braz Chediak


PAZ, SUBSTANTIVO FEMININO


Sentado em minha varanda, ouvindo o velho Nat King Cole, termino de ler a boa e lúcida crônica “CORAGEM, IRMÃO!”, da professora Vanja Ferreira, e, refletindo sobre a associação entre o medo e o ódio (ódio que muitas vezes se disfarça em coragem) vejo uma pequena corruíra voar para a beira do rio e se espojar na terra. Ela ainda é jovem, está mudando as penas e se exibe ao macho que a observa num galho de amoreira, cheia de orgulho da juventude e da exibição. Em segundos, revejo sua vida, o momento em que nasceu, em um pequeno buraco no muro de minha casa, os aflitos chamados pela mãe pedindo alimento, a primeira vez em que colocou a cabeça para fora do ninho, olhando tudo com curiosidade e deslumbramento, seu primeiro voo e a conquista do grande espaço que é o mundo.

Agora, sem me perceber, cumpre seu ritual: passeia na frente do futuro parceiro, trocam alguns sons que não entendo, fazem gestos talvez de carinho, alçam voo e somem em busca de outro lugar. Não há despedidas da velha casa e do velho cronista. Há apenas o voo em direção à renovação, em direção à vida.

Deixo de lado o jornal ao mesmo tempo em que uma jovem passa, ereta, também orgulhosa de ser jovem e de sua beleza altiva, segurando na mão de sua pequena filha. Penso na observação de João Cabral de Mello Neto – ou será de Murilo Mendes? – sobre a beleza da mulher em movimento. A jovem, caminhando com a criança, ciente de seu corpo, dos músculos bem modelados que se movem como elásticos, é como a imagem do poeta. Novamente volto no tempo e me recordo de quando ela era criança, como hoje é a filha, entrando em meu bar (o finado Bar do Braz, de tantas memórias), exibindo feliz seu tênis novo e me pedindo “balinha”. Recordo-me de quando, também no bar, a vi já adolescente, usando o primeiro batom e sentindo o prazer da liberdade de sair sem os pais, apenas em companhia dos amigos e tomar uma delicada taça de vinho. Ela também cumpriu seu ritual e agora, passeando com a pequena filha, ajuda a escrever a história da cidade, e do mundo.

Sir James Jeans diz que “Na realidade mais profunda, além do espaço e do tempo, talvez sejamos, todos, membros de um só corpo.” Este pensamento e a visão dos pássaros, da mulher e da criança, me entristece porque percebo que mesmo sendo parte deste grande OM, às vezes sentimos medo – medo, anagrama de demo -, e ele nos traz pensamentos obscuros, rancores e, pior ainda, atos e palavras vis. Quantas vezes agredimos a nós mesmo de maneira cruel e absurda! Quantas vezes devastamos uma floresta com indiferença e dirigimos nosso amor a um pequeno e artificial jardim! Quantas vezes matamos, dentro de nós, lembranças de pessoas que nos são queridas sem percebermos que seus lugares jamais serão preenchidos, que ficará em nossa alma – ou em nossa mente – um grande vazio!

Há uma frase ZEN que diz que “a solidão do samurai só é comparada à do tigre no deserto, às vezes”. E é esta solidão que estamos vivendo porque nos esquecemos das mais belas palavras pronunciadas por um homem que nos compreendeu e nos viu com plenitude: “AMAI-VOS UNS AOS OUTROS”.

Fico triste, eu dizia, mas releio a crônica da Professora Vanja e o pensamento, a visão dos pássaros, da mulher e da criança me alegra novamente porque percebo que a coragem existe e é possível. É com coragem que estamos todos, como diz May, “na luta do que não tem sentido, para obrigá-lo a significar. Na luta contra o silêncio, para que responda. Na luta contra o não-ser, para que seja.” E quando tudo for compreendido sem necessitarmos de explicações ou justificativas, não haverá medos e nos alegraremos com a viagem, a delicada viagem que estamos empreendendo e nos levará de retorno ao ponto de partida, ao estado puro, como estava a terra no momento da criação. Talvez neste dia alçaremos vôo, como a pequena corruíra, ou como a jovem que passa, e conquistaremos o espaço da verdade e da coragem dois substantivos femininos. Substantivos e femininos, como a paz.


(Revista Rio Total, CooJornal, Ano 9 - Número 473, 22 de abril/2006)



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Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG



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