16/08/2023
Ano 26
Número 1.330








ARTUR DA TÁVOLA
ARQUIVO


 

Artur da Távola


 
O TESTAMENTO DA VELHINHAS



Dois velhos locutores de rádio conversam.

Loc 1) Você viu a história do Astério?

Loc 2) Que história? Soube que ele morreu, coitado, e ainda por cima na lona?

Loc 1) Não sabe dos detalhes? São incríveis. Pois o Astério foi ser locutor ainda num tempo bom para locutores de rádio. Possuía voz agradável, melodiosa, muita gente achava melosa.

Loc 2) E era um pouco, cá entre nós... Que Deus o tenha.

Loc 1) Tá bem, não era uma grande voz, mas era agradável. Pois o Astério, que veio de menino pobre e sempre ganhou muito pouco como locutor, não casou, morava num apartamentinho seboso ali no Posto Cinco... Ele tinha um só sonho na vida. Ocorre que o ídolo dele era o Saint-Clair Lopes.

Loc 2 ) Qual? Aquele veterano locutor da Rádio Nacional? O que é que ele fez?

Loc 1) Nada demais, apenas era um homem correto, ótimo profissional, pessoa honrada. Advogava, além de tudo. Certa vez o Saint-Clair recebeu um Oficial de Justiça com intimação para ir a uma Vara de Família, a propósito de um testamento. Toma então conhecimento, pelo Juiz, de que uma senhora muito rica e solitária, afirmando ter sido por anos a fio sua ouvinte e que só ele lhe fizera verdadeira companhia na vida solitária, lhe deixava a sua fortuna, em agradecimento.

Loc 2) Que sensacional! Mas isso era nos anos áureos do rádio.

Loc 1) Eu sei, mas só que o Astério passou a vida inteira obcecado com a certeza de que o mesmo aconteceria com ele. Até que, há duas semanas, baixou um Oficial de Justiça na casa dele, com a citação para ir a uma Vara de Família. Nem dormiu aquela noite. E os três dias até a audiência, passou com diarreia nervosa. Afinal foi. Havia de fato, o legado de um testamento para ele. Sentiu-se no céu e recompensado. O Juiz então lhe entrega um pacote de cartas. Também era de uma velha senhora, esta pobretona e sem herdeiros, que, comovida pela companhia feita pela voz dele em suas noites de insônia, deixava-lhe, no testamento, todas as cartas de amor que lhe escreveu durante quinze anos e nunca teve coragem de mandar.

Loc 2) Só isso? Nada de grana?

Loc 1) Neca! Pô, cara, não seja tão materialista. Afinal emocionadas cartas de gratidão transformadas em amor são algo de muito valor humano.

Loc 2) E ele, o Astério?

Loc 1) É o que você sabe. Morreu dois dias depois.


(02 de julho/2005)
CooJornal no 427


Artur da Távola escritor, poeta, radialista
RJ
Enviado pelo autor ao CooJornal nº 427 da Rio Total, na data citada.



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