01/04/2022
Ano 25 Número 1.266
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Antonio Nahud
A LENDA DE UM FILME INACABADO
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Dedicado a Henrique Wagner
Ela estreou no cinema aos 15 anos e alcançou o sucesso com a romântica
trilogia sobre a imperatriz Sissi - papel que, aliás, nunca conseguiu se
libertar. Austríaca e filha de importantes atores, ROMY SCHNEIDER (1938-1982)
trocou o seu país natal por uma respeitada carreira internacional, numa
filmografia que reúne admiráveis clássicos como “O Processo” (1962, Orson
Welles), “O Cardeal” (1963, Otto Preminger), “Corações Desesperados” (1966,
Jules Dassin), “A Piscina” (1969, Jacques Deray), “As Coisas da Vida” (1970,
Claude Sautet), “Ludwig - A Paixão de um Rei” (1972, Luchino Visconti), “O
Importante é Amar” (1975, Andrzej Zulawski), “Uma História Simples” (1978,
Sautet) etc. Ganhou duas vezes o prêmio César de Melhor Atriz. Apaixonou-se
pelo galã francês Alain Delon, com quem atuou em três filmes e teve um romance
complicado. Nunca conseguiu se acertar com nenhum dos seus relacionamentos
amorosos, resultando numa depressão profunda e crônica. A tragédia levou
brutalmente seu filho único, aos 14 anos, perfurado nas grades do portão de
sua casa. Dez meses depois, aos 43 anos, faleceu devido a um fulminante ataque
cardíaco. Os jornais da época frisaram que ela morrera de "coração partido".
Enterrada em Paris, seu túmulo foi profanado e seu diário roubado. Acredita-se
que seus escritos eram muito comprometedores para os traficantes de drogas.
Poucos realizadores cinematográficos conseguiram
tanto êxito de público e crítica quando estavam vivos e tanto esquecimento
depois de falecidos como HENRI-GEORGES CLOUZOT (1907-1977). Desde a década de
1970, sua figura vem sendo marginalizada por motivos políticos e ideológicos,
acusado de colaboração com o regime nazista de Adolf Hitler durante a ocupação
da França, e sem que nesse absurdo declínio julgassem sua qualidade artística.
A obra clássica - e ao mesmo tempo vanguardista - do cineasta francês é uma
das mais surpreendentes do cine mundial, merecendo reconhecimento. Comparado a
Hitchcock por seus suspenses eletrizantes, ainda assim a turma da Nouvelle
Vague nunca lhe deu o mesmo crédito que dava ao mestre britânico. Temido e
controvertido, dirigiu 14 filmes, marcando época com pelo menos duas
obras-primas, “O Salário do Medo” (1953) e “As Diabólicas” (1955). Em 1950,
filmou no Brasil o inacabado documentário “Le Voyage en Brésil”, casando-se
com a brasileira Vera Amado, que colocou como atriz em três de seus filmes e
produtora da Vera Films. Porém, ela morreu jovem, de um ataque cardíaco. O
último sucesso de Clouzot, “A Verdade” (1960), envolveu-se em muitos
escândalos na época das filmagens, inclusive uma tentativa fracassada de
suicídio da estrela Brigitte Bardot e um colapso nervoso do diretor.
Felizmente ganhou o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e a nomeação
para o Oscar na mesma categoria. Na sua trajetória, o cineasta levou também o
Urso de Ouro no Festival de Berlin, o Prêmio Louis Delluc, o Leão de Ouro no
Festival de Veneza e Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes.
Em
1964, HENRI-GEORGES CLOUZOT e ROMY SCHNEIDER começaram a filmar o ambicioso e
experimental O INFERNO (L’Enfer), um projeto original e enigmático de grande
orçamento, drama delirante sobre as alucinações de um gerente de hotel (Serge
Reggiani) na Provença enlouquecido de ciúmes pela esposa (Schneider, no auge
da beleza), previsto para ser um fenomenal acontecimento. No entanto, após
três semanas de filmagens delirantes, aquele que poderia ter sido um dos
maiores filmes da história, foi interrompido. Por inúmeras razões, o diretor
não conseguiu terminar a obra. Perfeccionista, refilmava seus planos à
exaustão, mas nunca chegava àquilo que procurava. Fez muitos testes com
maquiagem e figurino para tentar conseguir efeitos inéditos e diferentes,
atrasou as filmagens e enlouqueceu o casal de atores e toda a equipe técnica.
Ao querer tratar da obsessão amorosa, ele não conseguiu dissociá-la da
obsessão pela arte. Gastou rios de dinheiro, o tempo de 150 profissionais,
desenvolveu novas técnicas de iluminação, de manipulação das formas e das
cores, estourando o orçamento. O filme nunca foi concluído, restando imagens
fascinantes, como aquela em que ROMY SCHNEIDER fuma um cigarro, com um rosto
diabólico de mulher fatal, flertando com a câmera e soltando baforadas
lascivas banhada por uma luz cambiante e prateada – imagem que faria parte dos
pesadelos do protagonista. Seminua, aos 26 anos, a atriz revela-se doce e
erótica ao mesmo tempo, inacreditável, numa das paisagens mais sobrenaturais
já captadas pelas lentes de uma câmera.
Com seu inseparável cachimbo, HENRI-GEORGES CLOUZOT era famoso pelas
manias e pela meticulosidade, filmando absurdas vezes a mesma cena até atingir
o ponto que julgava ideal. Mau humorado e de caráter sombrio, não sabia se
comunicar com os atores e sua relação com o set beirava a tirania, o que
explica a deserção do astro principal, Serge Reggiani, acometido de depressão
e stress. Substituído por Jean-Louis Trintgnant, este terminou por abandonar
as filmagens em cinco dias. Como sofria de insônia, Clouzot tinha o incômodo
costume de acordar os atores altas horas da madrugada para falar das cenas
planejadas para o dia seguinte, o que os enlouquecia. Na época, ainda em
choque com a morte da esposa, também sofria a perseguição dos seguidores da
Nouvelle Vague, que consideravam seu cinema ultrapassado. Clouzot era
ambicioso e sua ambição não era desmedida. Com O INFERNO, tentou dar a volta
por cima, desejando revolucionar o próprio cinema, renovar sua arte e demolir
sua reputação de antiguidade. Mas caiu na armadilha: muito dinheiro, muito ego
e a ausência de alguém que desafiasse sua autoridade. Com a tensão da
realização que despertava colossais expectativas, teve um ataque cardíaco. Em
seu filme inacabado combinou imagens em preto e branco com outras com luzes
coloridas, planos e enquadramentos diferentes – tudo para traduzir o ciúme
doentio do personagem central. Em 1994, Claude Chabrol utilizou o mesmo
roteiro deixado por Clouzot em “Ciúme, o Inferno do Amor Possessivo”, desta
vez com Emmanuelle Béart e François Cluzet.
(RT, 25 de janeiro/2013) CooJornal nº 824
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
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