Antonio Nahud
O ELOGIO DA VIAGEM
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Uma das melhores sensações da vida é a
de chegar a uma cidade desconhecida e tentar perceber-lhe os contornos. A
expectativa da diferença: da língua, dos costumes, dos rostos, da paisagem.
Uma estrada nova desenhada pelos nossos medos, impulsos e finalidades, um
vestígio de infância e do sentido de descoberta que os meninos conhecem e os
homens crescidos ignoram. Na idade adulta, só o amor provoca essa estranheza,
essa agonia de estar sem desejar estar, de partir sem saber para onde, de ir
sem perguntar.
Menino que sou, não aceito a morte do desejo de viajar,
não aceito lugares onde o meu coração não pulsa. A viagem é uma porta sempre
aberta, uma lâmpada que arde na noite sem se apagar, um mistério como uma
chuva de estrelas cadentes. A viagem é como um par de asas que substitui
sapatos. Nos dias de tédio, de revolta contra os políticos que fingem que nada
é culpa deles, de angústia provocada pela barbárie de todos os preconceitos,
conforto-me com as recordações de viagem, levando-me a alegrias serenas. Em
geral, o ruim é esquecido. Não há nada mais enfadonho do que alguém falando de
problemas na alfândega, da sujeira das ruas de Roma ou da péssima comida de
Londres. Viajar significa contar o visto e vivido, aprender com o desconhecido
ou somente fugir da rotina cotidiana? Lembro sorrindo o canto do Alcorão numa
noite marroquina, o inverno nos pirineus espanhóis, a casa em Londres da
heroína de “...E o Vento Levou”, Scarlet O’Hara (Vivien Leigh), os antros
delirantes do Bairro Alto lisboeta, o cheiro de cacau na rodovia
Ilhéus-Itabuna, as dunas intermináveis de Galinhos, um encontro satânico no
parque El Retiro em Madri, certas identificações com museus e livrarias
parisienses, um barco durante uma estranha madrugada de lua cheia em Boipeba.
Não viajar é não conhecer o novo. Viajar limpa a alma, aclara o
pensamento. O desconhecido autoriza-nos a enxergarmos diferente, sem as
contrariedades e os naufrágios do cotidiano. A viagem deixa-nos livres para
sermos poéticos e falharmos à vontade. Livres para procurarmos o que não
existe. Viajar é um santo remédio contra o provincianismo, a monotonia ou a
maledicência de quem não tem mais o que fazer. Foi com o pé na estrada que
muitos escritores e poetas que admiro construíram sua obra: Michaux, Algiéras,
Rimbaud, Ginsberg, Whitman, Gide etc. No dia em que eu não puder viajar, nem
aquela viagem interior que é a do leitor de livros, o mundo terá para mim o
tamanho de uma pequena gaiola de aço, e eu serei um pássaro mudo. Mas não
quero pensar nessa possibilidade, prefiro ver-me como um poeta-aventureiro até
o último dos meus dias.
Cada viajante tem a sua arte. Como dizia Paul
Bowles e Bruce Chatwin, grandes escritores-viajantes ou vice-versa, “o
importante é ser viajante, nunca turista”. É que o turismo vive de folclore e
vaidades, destruindo simultaneamente as cidades litorâneas do nordeste
brasileiro como as selvas de Costa Rica para construir hotéis, arrecadar muito
dinheiro e operar como bálsamo para uma classe acomodada entediada. É só
comparar, por exemplo, Pipa ou Porto Seguro, o que foram um dia com o que são
hoje.
Eu gosto de explorar as cidades de noite e de madrugada. Nunca
deixo de ir ao cinema ou ao teatro mesmo que não entenda o idioma. As igrejas
e os templos fora da rota turística são indispensáveis, assim como os mercados
populares, as zonas sórdidas, os cemitérios, os bares freqüentados por
artistas fracassados, os mosteiros, os bosques e os rios. Não se descobre
segredos de um mundo que já está descoberto. Visitar a Torre Eiffell ou o
Corcovado é pura redundância. É enfadonho visitar muitos monumentos em poucas
horas, gastar rolos de fotografias, ouvir o lengalenga de guias. Bom é passear
suavemente, sem destino, parar, observar.
É preciso viajar para deixar
a cabeça girar e evoluir o cérebro. Primeiro elegendo um destino como se elege
um amante. Haverá que intuir, perguntar, ler, arriscar. Conheço muita gente
que procura impor a sua forma de férias. Falam de compras fantásticas em Nova
York, discos enlouquecidas em Ibiza e hotéis de sonho em Cancun. Os cruzados
da Idade Média viajavam para salvar a alma e viver aventuras. Os turistas
obcecados pelo consumo apenas enganam o vazio de suas existências. Viajar é
pedir pouco, não ter medo, apostar no inesperado, compreender que o movimento
cura a melancolia. Como dizia Robert Louis Stevenson, outro escritor-viajante,
“quando viajo peço somente o céu sobre meu corpo e um caminho para os meus pés”.
Pela primeira vez em Londres hospedei-me no apartamento de um velho amigo
de infância, um artista, na agradável Wimbledon. Ele preparava jantares
perfeitos, dava dicas das melhores galerias e chamava-me para ver os debates
com a inteligente Germaine Greer na BBC. Não era bem o que queria. Mudei-me
para um prédio vitoriano invadido por jovens, sem energia elétrica,
aquecimento ou água canalizada, num turbulento bairro de negros e imigrantes:
Elephant and Castle. Do meu imenso quarto no último andar, iluminado por velas
em candelabros, escrevi diversos poemas e organizei reuniões festivas.
Banhava-me em banheiros públicos. Bastante divertido e enriquecedor, e eu só
deixei-o quando membros neo-nazi ameaçaram atear fogo no local. Eles haviam
queimado uma família de hindus uma semana antes.
Perigos existem, mas o
êxito de uma viagem depende principalmente do aprendizado, da paixão, da
descoberta e nada disso se encontra em grupos turísticos ou numa loja de
souvenires. Deixo de lado as mordomias dos nossos costumes burgueses e parto
para o desconhecido. Ou seja, viajo sem problemas pré-concebidos. O que posso
dizer com a experiência própria de anos como viajante, é que minha vida
cresceu e minha origem é só uma peça que completa meu quebra-cabeças interior.
Entre outras coisas porque minha memória - intelectual, espiritual, erótica -
tornou-me um sem pátria.
(RT, CooJornal nº 291, 21 de dezrmbro, 2002)
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países,
fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go
(Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A
Tarde (Salvador, Bahia).
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