Antonio Nahud
Em Busca de um Cinema Esquecido
ANTROPOFÁGICO OTHON
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De modo algo simplista, embora sugestivo, podemos considerar que a
evolução da narrativa cinematográfica bressaniana está dividida entre duas
atitudes: uma ideia central exposta através de quadros dramáticos e uma
composição refinada entre luz e música. Nos seus filmes, não é possível
avaliar (nem sequer descrever) uma história que se conta, uma sinopse. Para a
justificar, Os Sermões – A História do Padre Antônio Vieira (1989, seria uma
sensata escolha. Podemos, evidentemente, lembrar que este é uma espécie de
biopic que funciona ao contrário da tradição, da biografia factual, é mais uma
reflexão sobre o cinema e as origens do barroco brasileiro. Aqui, numa forma
estilística de vanguarda, a prosa de Vieira se aproxima da poesia concreta,
com detalhes visuais luminosos e acentuada audição que namora o silêncio. Há
imagens congeladas, repetição sucessiva de uma mesma palavra e um diálogo
próximo com o movimento modernista, numa vertigem barroca fragmentada. Dez
anos depois, o português Manoel de Oliveira, também de trajetória autoral,
levou o mesmo e polêmico personagem às telas. Palavra e Utopia foi um rotundo
fracasso, salvando-se a competente atuação de Lima Duarte como o Vieira no
final de vida. O filme de Bressane, pelo contrário, é de uma dinâmica poética
encantadora. O cineasta traçou a biografia de Vieira, um dos maiores
estilistas da língua portuguesa, não linearmente, apreendendo o essencial de
sua fé, as posições políticas lúcidas, o combate à inquisição e sua dupla
ligação com a metrópole, Portugal, e a rica colônia, Brasil. Uma visão nada
convencional da vida do padre e escritor. O experimental Bressane (Rio de
Janeiro, 1946) misturou trechos de antigos filmes do cinema mudo
(principalmente Dreyer e Murnau), história (lembrando, por exemplo, Lampião),
a orientação poética de Haroldo de Campos, intervenções de Caetano Veloso e
referências à pintura, resultando num filme sólido com extraordinária
interpretação do ator baiano Othon Bastos. Figura marcante de clássicos como
O
Pagador de Promessas (1962), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963),
Os deuses
e os Mortos (1970) e, mais recentemente, Central do Brasil (1998), Othon
Bastos vem de coerente carreira teatral iniciada no Teatro da Universidade da
Bahia, com o mítico Martin Gonçalves, e de expressão política-social no Teatro
Oficina, em São Paulo, no final dos anos 60. Teve seu melhor momento no cinema
como o angustiado fazendeiro consumido por dilemas morais, Paulo Honório, de
São Bernardo (1971), de Leon Hirszman, baseado na novela homônima de
Graciliano Ramos. O ator mastigava soturnamente as palavras, numa violência
contida, nunca a fazendo explodir. Sua atuação em Os Sermões também foi
excepcional, recebendo o prêmio de melhor ator no Festival de Brasília. Usa o
seu protagonista como se fosse fantasma da sua própria história. Othon Bastos
devora impiedosamente as suas criações. Bressane, um dos pioneiros do
movimento Cinema Marginal, filmes bonitos e radicais do final dos anos 60, sem
preocupação em seduzir o público, é autor de uma obra inventiva, debochada, de
competente realização estética e grande incompreensão. Costuma avaliar o seu
cinema-manifesto com a frase do cineasta francês Abel Gance: “Cinema é a
música da luz”. Filmando com poucos recursos e valiosa agilidade, nunca
comoveu o público nem parte da crítica especializada. Mesmo assim, é evidente
sua originalidade em filmes como Tabu (1982), Brás Cubas (1985) ou
Miramar (1997).
Começou como assistente de direção de Walter Lima Jr. em
Menino de
Engenho (1965) e em 1970, por motivos políticos, exilou-se em Londres, Tânger
e Nova Iorque. Hermético, inventivo, pensador da linguagem cinematográfica,
senhor de um estilo rigoroso, exigente, difícil, está a milhares de distância
de um cinema conservador e estagnado, vendável, que imita a televisão. O
significativo Os Sermões, com uma elaborada fotografia de José Tadeu Ribeiro,
é onde o conceito do diretor se cristaliza: a tendência à extrema abstração,
repetidos e longos planos do mar infinito e de árvores imponentes, narrativa
lenta, imagens simbólicas, amplitudes de significados nem sempre
decodificáveis, a errância por cenários diversos - sinais de um mundo de
correspondências, entre tempo e espaço, idéias e imagens. Dinâmico e criativo,
denso, de narrativa anticlássica, é jogo lúdico entre luz e palavra. As frases
de efeito, mensagens, aforismas, citações num só plano, tão comuns na criação
de Bressane, adquirem densidade e combinam com a verborragia de Vieira. O
ritmo do filme, seus silêncios, sua dramaturgia diluída, sua pontuação
narrativa, torna-o complexo, não há como negar. No entanto, não se pode
julgá-lo como apenas um filme de citação, de referência, para quem tem um
repertório parecido com o autor, afinal a singularidade e o fascínio de Os
Sermões passam por outros fatores – passam por tudo aquilo que é específico da
sua condição de objeto cinematográfico. Aliás, em rigor, creio que Bressane se
vem inserir numa área moderna em que a música, a imagem e a palavra funcionam
como modelo, ao mesmo tempo radical e emocional, susceptível de ser recriado
de forma inovadora e mais ou menos perversa, pois brinca com a inteligência do
público. Seus filmes sem concessões comerciais existem como se habitassem um
sonho sonhado por um deus ausente.
Os Sermões – A História de Padre
Antônio Vieira (1989) Direção e Roteiro: Júlio Bressane Fotografia: José
Tadeu Ribeiro Cenografia: Roberto Granja Vestuário: Bia e Inês Salgado
Música: Lívio Tragtemberg Montagem: Dominique Paris Elenco: Othon Bastos
(padre Antonio Vieira), Eduardo Tornaghi, Breno Moroni, Paschoal Vilaboim,
Caetano e Dedé Veloso, Bia Nunes. Produção: Júlio Bressane (Embrafilme)
(27 de julho/2002) RT, CooJornal no 269
Antonio Naud é escritor, assessor literário, cineasta
RN
Antonio Júnior segue a caminhada de escritores como Bruce Chatwin, François
Augiéras e Paul Bowles. Viaja por diversos países,
fotografando e escrevendo um diário de viagem. Escreve para as revistas Go
(Barcelona), Veludo (Lisboa), Simples? (SP) e é correspondente do jornal A
Tarde (Salvador, Bahia).
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